A cinematografia brasileira tem se posicionado nos quadros da polarização política e ideológica ocorrida após o golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016. De um lado, alguns cineastas explicitaram sua contrariedade ao fato, como no caso da equipe do filme Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016), no Festival de Cannes. De outro, temos o conservadorismo ou mesmo reacionarismo presentes em filmes ligados à defesa das operações da Lava-Jato, como Polícia Federal: a lei é de todos (Marcelo Antunez, 2017) ou O Mecanismo (José Padilha, 2018)[1].
O filme Democracia em Vertigem, da roteirista, produtora e diretora Petra Costa, se insere nesse debate, construindo uma narrativa sobre a crise da democracia brasileira, a partir da experiência dos governos Lula e Dilma Rousseff, sob a sombra da cultura política autoritária. Com ampla repercussão na imprensa nacional e internacional, quando do seu lançamento, em 19 de junho de 2019, pela plataforma de streaming Netflix, o filme possibilita-nos debater os impasses atuais da democracia brasileira.
A narrativa documental mescla a memória individual da diretora articulada à memória social construída por imagens de arquivo e gravações autorais que remontam à campanha das Diretas Já até o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. A frustração pessoal da crise democrática atual é a tônica da narrativa fílmica, expondo as contradições entre a origem familiar de herdeira da construtora Andrade Gutierrez e a militância da esquerda comunista de seus pais, tendo como pano de fundo a emergência de novos atores políticos no final dos anos 1970, a partir da ascensão e prisão da figura carismática de Luís Inácio Lula da Silva. Como ponderou Frank Ankersmit, a lembrança do passado é, primeiramente, individual, mas, de fato, só sobressai no pano de fundo coletivo[2].
O cineasta, como o historiador, que se debruça sobre a história do tempo presente, que se sabe inacabada e sujeita a revisões, não pode se furtar a tomar “partido”, de filmar ou escrever “a partir de um ponto de vista e, por isso mesmo, é eminentemente política, uma vez que descreve e estabelece relações entre acontecimentos, estipula periodizações, e, assim, atribui ao que é narrado significados e valorações”[3].
Partindo da interrogação de que a democracia brasileira seria apenas um “sonho efêmero”, a narrativa se inicia com imagens do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, durante a prisão de Lula, retomando sua trajetória, desde as greves operárias do final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Da pujança das imagens dessa época filmadas por Leon Hirszman sobressai a emergência do operariado como sujeito da história e como personagem cinematográfico.
Essa sequência serve para discutirmos a permanência do passado autoritário entre nós, com a construção de uma “democracia com esquecimento” estabelecida pela política de conciliação, cujo arranjo nunca foi “entre iguais”, já que tem objetivo manter “o fosso – econômico, social, cultural e político – que, desde as origens, existiu entre grupos dominados” e dominantes[4].
A trajetória da principal liderança de esquerda, Luiz Inácio Lula da Silva, é moldada com imagens da construção do Partido dos Trabalhadores (PT) no início dos anos 1980, com as campanhas eleitorais de 1989, 1994 e 1998, até chegar a sua adesão à tradição política da conciliação de classes. Essa contradição é assim comentada pela narradora:
"Eu votei no Lula com a esperança que ele reformasse eticamente o sistema político. Mas lá estava ele, repetindo as práticas que sempre criticou e formando alianças com a velha oligarquia brasileira"[5].
Mesmo com a ampliação da inclusão social, a experiência do lulismo representou o signo da contradição entre “conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo movimento”. Com o objetivo de manter a governabilidade, a estratégia de conciliação de classe – inclusive com setores fisiológicos da direita brasileira – mostrou os seus limites com a implosão da frente política do neodesenvolvimentismo e a rearticulação política da direita[6].
Os avanços da democracia no Brasil dos últimos trinta anos não conseguiram extirpar a corrupção sistêmica do sistema político, impactando, decisivamente, sobre a legitimidade do PT nos quadros do presidencialismo de coalizão. Do discurso inicial de renovação ética e política à adesão ao financiamento político ilegal, a fala de Gilberto Carvalho, ex-ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República no governo Dilma e chefe de Gabinete do governo Lula, expôs, com vigor, essa contradição:
"a gente [do PT] passou a depender demais da governabilidade apenas com o Congresso. […] O financiamento de campanha achamos que era natural. Não fizemos a tal da reforma política que era fundamental ter feito pra acabar com a desgraça do financiamento de empresas. Aí tá a mãe da corrupção. O cara é candidato, precisa da empresa, a empresa dá o dinheiro. Depois vem pedir uma coisa pro cara, o cara pensa: se eu não votar esse projeto, não fizer essa concessão, não vou ter dinheiro na próxima campanha. O partido começou a fazer o que os outros faziam"[7].
De modo claro, seu comentário expôs a necessária autocrítica do lulismo de que estava perdendo a hegemonia do processo político pelo avanço de setores da direita e da extrema-direita nas mobilizações de rua entre 2013-2016. Com os limites do presidencialismo de coalizão e o ineficiente combate à corrupção, setores insatisfeitos de classe média articularam um discurso de associação entre “a gestão petista e as políticas de inclusão ao aumento da corrupção e à deslegitimação do sistema político”[8].
A nova influência de uma classe média conservadora, com grande capacidade de mobilização, impactou no discurso revisionista sobre a ditadura militar, encontrando eco político nos movimentos de extrema direita. Com um discurso antipetista e de relativização das ações dos militares na conjuntura de Guerra Fria de combate ao comunismo, a força desse discurso encontrou no político Jair Bolsonaro sua caixa de ressonância, como constatado na defesa explícita do conhecido torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, no momento de votação do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, ou em algumas passagens expostas no filme:
"O agronegócio é apaixonado por mim quando falo ‘no que depender de mim, vocês na fazenda vão ter fuzis’”; “Cartão de visita pra marginal do MST é um cartucho de 762”; “Vocês, caso queiram ter uma arma dentro de casa, se depender de mim, terão! Assim se combate a violência!”; “Vagabundo, o que ele entende é pancada”; “Me chamam de grosso, homofóbico, fascista etc. Eu sou um herói. E estou cada dia mais vivo perante a opinião pública"[9]
Em um cenário de intolerância política, com uma pauta antidemocrática com forte inserção no Congresso Nacional e regressão dos direitos civis, os resultados políticos do impeachment e das eleições de 2018 demonstraram que a defesa da memória dos militares atuantes na ditadura tinha mais força na sociedade civil do que se supunha no longo processo de transição democrática. No filme encontramos na rua algumas sugestões de intervenção militar nas manifestações de 2014 e 2015, sob o argumento de que se vivia melhor na época da ditadura militar do que nos tempos atuais. A justificativa disso pela experiência de um velho senhor demonstra a tentativa de desqualificação da escrita da história sobre a ditadura militar pela experiência individual, de substituição da pesquisa histórica pela experiência vivida do senso comum.
A polarização política e ideológica nas ruas aparece, com vigor, em cenas de intolerância contra dois jovens militantes vestidos de camisa vermelha, que precisaram ser escoltados por forças policiais ou na construção do muro pelo governo do Distrito Federal, quando da votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff no Congresso Nacional.
Aqui a questão de classe é visibilizada pela oposição entre as classes populares, beneficiadas pelas políticas públicas dos governos Lula e Dilma, e o reacionarismo das classes médias urbanas que da “desilusão com o projeto de esquerda está se transformando em uma crítica à democracia e a um projeto de inclusão social”[10].
Por outro lado, as cenas de intimidade com o poder do documentário revelam o conluio entre empresas e governos, impactando, contraditoriamente, a própria crítica da diretora quanto ao domínio familiar da coisa pública, de que somos uma “república de famílias”. Essa crítica se encontra com as ideias de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil (1936), quando estabelece uma desmitificação da retórica liberal entre nós, procurando entender por que a democracia foi um “mal-entendido” no Brasil[11].
Entretanto, essas imagens familiares com presidentes da república e governadores explicitam a transformação da empresa Andrade Gutierrez em uma das maiores empresas brasileiras por conta das benesses do Estado, que vem desde o período JK, passando pela ditadura militar e chegando à Nova República. Mas também da seletividade da repressão da ditadura militar com relação aos militantes de esquerda vinculados às grandes famílias, quando sua mãe, após uma breve prisão, passa a viver em uma semiclandestinidade, ao lado de seu pai, nos anos 1970. Talvez a simpatia, às vezes acrítica, da diretora à presidenta Dilma, ao contrário de sua postura com relação à Lula, esteja, inconscientemente, associada a determinada sua própria seletividade da memória familiar de valorização da militância de seus pais.
De todo modo, o filme cumpriu o seu papel de fomentar o debate sobre a democracia no Brasil, principalmente, quando no seu final aponta para vinculações entre as ações da Lava Jato e a ascensão eleitoral de Jair Bolsonaro, em 2018, mostrando que “o processo de construção democrática no Brasil sofreu um duro golpe entre 2013 e 2016”, quando se estabelece “um forte consenso pró-impeachment e contra a presidente no campo extrainstitucional que se articula com o campo institucional e tem forte apoio midiático”. Como não poderia deixar de ser, o filme foi atropelado pela própria história por conta das revelações explosivas da Vaza-Jato pelo The Intercept Brasil, editado, entre outros, pelo premiado jornalista Glenn Greenwald. Nessa constante reescritura da história do tempo presente, talvez possamos reconstruir “novos consensos em relação ao papel da política, da representação, da participação e do Estado” em defesa da democracia no Brasil[12].
*Antônio Fernando de Araújo Sá é professor do Departamento de História da UFS.
Bibliografia
[1] FREIRE, Rafael de Luna. O cinema brasileiro entre dois séculos. In: In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Tempo da Nova República: Da transição democrática à crise política de 2016. V. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, p. 328.
[2] ANKERSMIT, F. R. Commemoration and Nacional Identity. Textos de História. Volume 10, n. 1-2, 2002.
[3] MÜLLER, Angélica e IEGELSKI, Francine. O Brasil e o tempo presente. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Tempo da Nova República: Da transição democrática à crise política de 2016. V. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, p. 13.
[4] DEBRUN, Michel. Os dilemas da “Conciliação”. In: A “Conciliação” e outras estratégias. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 72 e 73.
[5] Citado em ESCOREL, Eduardo. Democracia corrompida: Políticos, empresários e partidos em vertigem no documentário de Petra Costa. Revista Piauí. N. 153, junho de 2019, p. 47.
[6] SINGER, André. Raízes sociais e ideológicas do lulismo. In: Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 6.
[7] Citado em ESCOREL, Eduardo. Op. Cit., p. 50.
[8] AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 21.
[9] Citado em ESCOREL, Eduardo. Op. Cit., p. 50.
[10] AVRITZER, Leonardo. Op. Cit., p. 22.
[11] DIAS, Mª Odila L. da S. (org.). Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo, Ática, 1985.
[12] AVRITZER, Leonardo. Democracia no Brasil: do ciclo virtuoso à crise política aberta. In: BOTELHO, André e STARLING, Heloisa Murgel (orgs.). República e Democracia: impasses do Brasil Contemporâneo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2017, p. 27 e 29.