Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá
"a ignorância do passado não se limita a prejudicar o conhecimento do presente; compromete, no presente, a própria ação"
Marc Bloch
A memória coletiva tem se tornado uma verdadeira matéria-prima da vida cívica nos mais diversos países. Ante a esse desejo de memória nas sociedades contemporâneas, os historiadores reencontraram uma função crítica no seio da cidade. Interpelados pelas memórias traumáticas das experiências autoritárias das ditaduras latino-americanas, aqueles que se debruçam sobre o nosso passado deixaram de movimentar no terreno tranquilo da memória partilhada para um território “infinitamente mais difícil da memória contestada” (AYMARD, 2003: p. 15). Esses deslocamentos redirecionaram o debate entre história e memória, impondo uma reflexão sobre o que deve ser “memorável” na sociedade.
Desse modo, os usos e práticas da memória passaram a ocupar um lugar proeminente nas diferentes teorias contemporâneas, assumindo, inclusive, uma dimensão política muito forte nos dias atuais. O passado revela não somente o que ocorreu, mas como é construído, em grande medida, pelos atores sociais em luta no presente,e é modelado sob formas de erosão, de esquecimento e de invenções seletivas.
Para além da questão do conhecimento histórico-cultural, a memória é também um direito da cidadania, pois, ao lidar com a construção do sentido dos indivíduos em sua inserção nas diversas temporalidades, molda uma rede de afetos, de reflexão e de esperança, fundamentado nas alterações das exigências da vida.
Num momento em que assistimos mobilizações nas ruas que apelam para uma intervenção militar na vida política e institucional brasileira, entendemos que é urgente e necessária uma reflexão sobre as condições que permitiram a implantação e manutenção da ditadura civil-militar no Brasil durante tão longo período. O golpe de 1964 foi um dia de triste memória que se transformou em uma ditadura de 21 anos.
Como disse Chico Buarque e Francis Hime na música Vai Passar (1984):
Num tempo página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações.
Não podemos esquecer!
Os mais jovens, às vezes, confundem ditadura com democracia nas suas falas cotidianas e nas salas de aula, sem se atentar para diferenças abissais dos respectivos regimes políticos. Precisamos insistir na memória das ditaduras como forma de registrar o lugar da violência e do arbítrio na história do Brasil recente e, ao mesmo tempo, construir uma multiplicidade dos lugares de fala, dos diversos atores para a construção de uma memória democrática. O direito à memória é uma condição fundamental para o avanço da democracia no Brasil e, por isso, faz-se mister nos engajarmos na luta pela salvação dos acervos e arquivos, mas também do registro de depoimentos e lugares de memória.
Nesse sentido, propus no egrégio Conselho Superior da Universidade Federal de Sergipe propositura de construção de um lugar de memória que reivindique a defesa da democracia, aludindo, principalmente, a resistência individual e coletiva daqueles que combateram o autoritarismo da ditadura civil-militar, motivado pela efeméride dos 50 anos do golpe de 1964. Como outras propostas memoriais, a iniciativa do Memorial da Democracia tem por objetivo uma função eminentemente pedagógica de construção de uma consciência democrática e cidadã, na tentativa de evitar a política de esquecimento produzida por diferentes grupos sociais dominantes durante o processo de transição à democracia.
No monumento está a chave para se pensar a memória, pois ele é a objetivação da memória. A memória é um suporte dos sujeitos históricos que batalham para definir/construir o futuro. Os “usos do futuro são, também, fundamentalmente, usos do passado” (ACHUGAR, 2006: p. 223).
Assim, além do monumento em si, que terá pilares a Verdade, a Memória e a Justiça, teremos sinalizações alusivas aos acontecimentos nacionais e locais para que essas tristes memórias não caiam no esquecimento. O Memorial da Democracia para manter-se vivo no seio da comunidade universitária deve criar atividades didático-pedagógicas a respeito dos Direitos Humanos, Memória e Verdade, bem como eventos culturais que proporcionem o pleno exercício democrático na Universidade Federal de Sergipe.
Seguindo as sugestões do historiador francês Marc Bloch na epígrafe desse artigo, é necessário compreender o presente pelo passado, mas também compreender o passado pelo presente, pois entendemos a história como intervenção política e criação contínua.
BIBLIOGRAFIA
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre Arte, Cultura e Literatura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
AYMARD, Maurice. História e Memória: Construção, Desconstrução e Reconstrução. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 153, abril-junho de 2003.
BLOCH, Marc. Introdução à história. 4a. edição. Lisboa: Europa-América, s/d.