Marcos Santana de Souza
A realidade social e os desafios do tempo presente têm demonstrado que há muito mais semelhanças entre as profissões de professor e policial que poderíamos imaginar num primeiro momento.
As semelhanças, no entanto, estão longe de se restringir ao baixo padrão de remuneração vigente no país, aos riscos que envolvem ambos os ofícios – algo que se tornou mais evidente para os postulantes ao magistério nas últimas décadas – e ao reduzido reconhecimento social reservado a essas funções, apesar do seu caráter essencial. Por diversas razões, é difícil imaginar sociedades modernas que possam existir por muito tempo sem policiais e professores.
No campo das semelhanças, não apenas esses profissionais possuem geralmente uma origem social comum, sofrem com ameaças, vivem a experiência de se doarem a tarefas importantes e desprestigiadas, entre outras, mas costumam responder de forma parecida às cobranças de suas áreas e a tantos outros dilemas de uma sociedade como a nossa.
Se de um lado o Brasil figura há bastante tempo em baixas posições nos testes nacionais e internacionais que aferem a qualidade do ensino, no campo da segurança, inversamente, o país ocupa os primeiros lugares, superando países que enfrentam conflitos armados. Recentemente, o Brasil ficou na 38ª posição dentre 44 países onde o teste Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) foi aplicado para medir a capacidade dos alunos em raciocínio, segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Em avaliação anterior sobre leitura, ficou na posição 55ª dentre 65 países. Já de acordo com o Mapa da Violência 2014, o país alcançou o sétimo lugar no mundo em homicídios de jovens de 15 a 24 anos.
São sinais evidentes de uma crise ampla e do fracasso do país em duas áreas estratégicas. Não é difícil perceber o quanto o malogro da educação em vários níveis contribui para tornar próspera a violência, especialmente entre os mais jovens, comprometendo seriamente o desenvolvimento do país.
Ainda no campo das semelhanças, são muito comuns as queixas desses profissionais sobre a falta de apoio do restante da sociedade e do quanto as omissões e posturas dúbias da população e das autoridades têm contribuído para aprofundar a crise nas suas respectivas áreas. Professores e policiais comportam-se de forma parecida quando se trata de explicar o fracasso da educação e do enfrentamento do crime e da violência.
Para os primeiros, a família não estabelece limites para os filhos, não os orienta para a valorização da educação, omite-se em seu acompanhamento e cobra excessivamente resultados da escola. Já os policiais, grosso modo, afirmam que não tem o apoio da população e que a violência é um elemento difuso e estrutural da sociedade brasileira e que por isso pouco podem fazer além de lidar com a falta de interesse da classe política, com a inadequação da legislação e de setores que segundo eles militam, diretamente ou não, em favor do “enfraquecimento” do trabalho policial.
Em ambos os discursos, a “crise da família”, a formação autoritária e o comportamento violento dos brasileiros estão na raiz do problema, não cabendo apenas a eles resolver um problema que é de todos. Um argumento à primeira vista inquestionável e sem dúvida coerente frente o abismo que se criou entre esses segmentos e o restante da sociedade. No entanto, destaca-se na base desse pensamento mais uma semelhança: o caráter centralizador ou o mal do “exclusivismo” que conduz esses profissionais para o sofrimento e para o fracasso, não necessariamente nessa ordem. Há alguns dias uma colega me falou sobre a sua disposição em não ir mais para as reuniões de pais na escola onde tem o seu filho matriculado. A razão? O que poderia ser um momento de reflexão e debate sobre as escolhas da escola, sobre conteúdos, métodos e recursos de ensino se apresenta como mero espaço para comunicar ações. Há forma pior para encorajar a participação que organizar reuniões onde praticamente apenas a “escola” tem voz e decide?
Ainda que existam vozes dissonantes, grande parte dos professores e dos policiais aprecia ver-se como “super-heróis” ou “missionários” e por isso considera que apenas eles podem enfrentar a complexidade dos desafios desses dois campos. Em geral, diante do previsível fracasso em atenderem a responsabilidades descomunais, rebelam-se contra os críticos e com dificuldade reconhecem suas limitações.
Ou seja, ao mesmo tempo em que destacam que toda a sociedade contribui para o fracasso da escola e para o aumento do crime e da violência, é muito comum também ouvir desses mesmos profissionais que apenas “os de dentro”, aqueles que estão no “chão da sala” ou que estão “na rua enfrentando os bandidos” estariam autorizados a falar com propriedade sobre as suas áreas e respectivos desafios. Responsabilizando-se por “quase tudo”, terminam por fazer “quase nada” ou tornar o grande esforço empreendido em resultados poucos expressivos. Como não sofrer com uma autoridade que se esvazia por falta de bons resultados, liderança e reconhecimento?
Neste sentido, é importante apontar uma diferença fundamental diante de tantas semelhanças. Historicamente, a função policial goza de pouco prestígio. Dentre as razões apontadas por estudiosos como Egon Bittner (2003), estão o envolvimento com conflitos armados, o apoio a regimes autoritários, além do fato de os policiais terem que lidar com aquilo que definimos socialmente como “indesejável”, “sujo” e “perigoso”, ou seja, o que deve ser apartado do convívio social.
Se os policiais sofrem por terem que manter relação próxima com o crime e de terem de levar o “indesejável” para longe dos olhos da sociedade, existe a expectativa de que os professores tragam o indesejável para perto por meio do questionamento do mundo; algo que fere posições cômodas e que interfere sobremaneira em visões de mundo cristalizadas. Esse compromisso, que pressupõe comportamento ético, formação continuada e distribuição de responsabilidades quase sempre se choca com a tendência à centralização e com o comportamento resistente a críticas e a outras formas de avaliação e controle.
Nada mais prejudicial à construção de soluções equilibradas para a educação e para a segurança que a existência de consensos forçados que nos levam a fugir dos conflitos e nos encerram na posição de expectadores falsamente protegidos do confronto com as nossas próprias falhas e com a diferença encarnada no outro. Assim como a reprodução tecnicista que deixa de lado a crítica, a aposta na violência representa a fuga do conflito, pois se nega ao debate a partir de soluções aparentemente fáceis como o aniquilamento ou a morte do que é diferente ou indesejável.
Não raramente, em virtude do grande poder e responsabilidade associados a essas profissões, professores e policiais encaram a cobrança por resultados e a responsabilização de colegas por falhas como um ataque frontal a sua autoimagem. Eles se reconhecem como aqueles que por falta de estrutura e recursos também poderiam falhar, além da prevalência de um pensamento “romântico” que toma a simples participação nessas instituições como algo suficiente para demonstrar compromisso com a sociedade e com o ofício escolhido. Embora minoria, os maus profissionais possuem um forte poder de destruição, engajam-se nas estruturas e as usam como poucos. Sabem também mobilizar emoções e paralisar reformas sob a ideia de que o ataque a eles direcionado representa um “ataque a todos”.
Tal comportamento fica claro, por exemplo, nas reações negativas após a divulgação, na última semana, do Relatório da Anistia Internacional sobre as polícias no Brasil e outras pesquisas que apontam a permanência da prática de tortura e o aumento de mortes de suspeitos em confrontos com policiais. No caso dos professores, a pauta de suas reivindicações quase sempre fica restrita à busca por melhoria dos salários e das condições de ensino. Em ambos, preservam-se as estruturas e os protocolos de atuação, pouco transparentes e que dificultam reconhecer equívocos e omissões em nome da preservação desses poucos.
Mudar, portanto, as estruturas e os currículos que orientam essas instituições através de padrões ultrapassados de atuação é um desafio a ser enfrentado nessas áreas, sobretudo em um contexto onde a experiência comunitária se esvazia e abre-se cada vez mais espaço para o individualismo e para a perda de sentido da escola e da função policial. A preservação de uma ordem representada por estruturas obsoletas significa na prática um espaço aberto tanto para a permanência do atraso na educação quanto para o avanço do crime e da violência.
Desse modo, ter de forma clara a necessidade de valorizar o potencial pedagógico dessas profissões passa pela aposta no desenvolvimento da liderança, na autoridade sem autoritarismo como elementos essenciais para tirar professores e policiais do atual isolamento e favorecer a participação da sociedade na construção de caminhos que privilegiem o diálogo e a transparência. Os nossos desastrosos índices de educação e de violência provam que o isolamento e a briga por monopólio têm se mostrado inócuas para a transformação desses cenários. São, antes de tudo, duas das principais razões para o fracasso que vivenciamos.
*Professor do Departamento de Ciências Sociais