Ética à brasileira: Roberto Da Matta e sua proposta de entendimento da corrupção na Administração pública
Cicero Cunha Bezerra
13/02/2009
É comum, quando falamos de Ética, nos remontarmos de imediato à Filosofia ou aos dicionários com o intuito de estabelecer um conceito que, na maioria das vezes, se perde em confusões e conflitos teóricos. Aristóteles, Voltaire, Kant, só para citar alguns, servem de imprescindíveis e valiosas “muletas” para suprir longas páginas de artigos, no entanto, quase sempre nos esquecemos de que todo grande pensador, ainda que se debruçando sobre questões universais, pensou o seu tempo. É neste sentido que recorro, embora sujeito a muitas críticas de colegas “filósofos”, ao pensamento sócio-antropológico de Roberto da Matta para falar de ética no serviço público brasileiro. Na verdade estou cada vez mais convencido de que áreas como a Literatura, Sociologia e Antropologia têm contribuído, muito mais, para a formação crítica do pensamento brasileiro, do que a enfadonha Filosofia que insiste em manter-se fiel ao seu projeto de “reflexão” no sentido de refletir-se (reflexione) ou quem sabe reconhecer-se (recognocere), sob a imagem do conhecimento e da contemplação, como parte integrante de um pensamento “universal” que seria o mesmo que dizer eurocêntrico. O curioso é que, enquanto os pensadores europeus atuais estão cada vez mais fascinados pela América Latina e suas múltiplas possibilidades teóricas, seguimos buscando ser o que eles já não mais são.
Dito isso, quero somente ressaltar que o fato de não ser um estudioso do campo da sociologia – sou apenas um leitor atento de pensadores que acredito estarem em uma mesma zona em que a filosofia dialoga proficuamente com as ciências humanas –, me permite algumas imprecisões acadêmicas, pelas quais desde já peço desculpas aos especialistas, como, por exemplo, tomar o pensamento de Da Matta como guia, sem nenhuma objeção crítica, algo que reconheço como extremamente relevante no atual debate sobre a formação da sociedade brasileira, mas prefiro limitar-me a expor sua lucidez ao apresentar as artimanhas hierárquicas que norteiam as decisões políticas no Brasil, particularmente na sua obra “Carnavais, Malandros e Heróis” e, mais especificamente, em seu informe apresentado ao Banco Interamericano de Desenvolvimento de 20 de novembro de 2001 intitulado Considerações sócio-antropológicas sobre a Ética na Sociedade Brasileira e em sua conferência proferida na abertura do Encontro de Representantes setoriais em 13 de setembro de 2001.
Para uma melhor compreensão do tema, e dado o limite deste artigo, farei uma breve exposição dos argumentos apresentados por Da Matta no seu informe e, em seguida, aponto algumas conclusões que nos ajudam a entender melhor nosso atual estado, que muitos descrevem como “insuportável”, de convivência nas instituições públicas de ensino.
Segundo Da Matta, inspirado em Max Weber, as relações político-sociais no Brasil estão profundamente marcadas por uma “ética dupla”. O que isso quer dizer? Que no Brasil temos um conflito em que o “moderno”, que o mesmo define como a necessidade de decisões isonômicas e universais (impessoal) se choca radicalmente, com o tradicional, ou seja, com o impulso (pessoal) marcado pela simpatia, pela amizade, pela família, por “Maria”, “José”, enfim, pelos “amigos” que estão, como bem observa Da Matta, “acima da lei”. Essa situação “dupla” é o que permite o emprego da famosa frase: “ você sabe com quem está falando?”. Para Da Matta esse é o dilema que enfrenta a sociedade brasileira: compreender a ambigüidade constitutiva do cálculo duplo, isto é, perceber como o universo “da casa” invade o espaço público.
Um dos aspectos que melhor expressa a “mão dupla” que caracteriza o “poder à brasileira” está representado na premissa de que o alto administrador “tudo pode”. Essa constatação faz com que Da Matta pergunte: “para que inventar essa chatice de ética quando as pessoas desfrutam de seus pistolões, títulos ou são de partidos apropriados?”. É indispensável, portanto, para entendermos o “poder à brasileira”, compreendermos a “visão que as elites do poder têm de si mesmas e do meio social onde atuam” (Da Matta, 2001). O fato é que estamos, segundo o antropólogo, muito mais interessados e acostumados a ouvir propostas de mudanças das estruturas do Estado, do que a considerar as “condutas dos funcionários” desse Estado.
Sem sombra de dúvida, não basta mudar nomes, formas ou regras, deixando de lado as pessoas, isto é, os funcionários encarregados do gerenciamento dessas estruturas nas suas ações. Da Matta ilustra o seu informe, ao Banco Interamericano, com uma história, narrada pelo especialista em história social do direito Harold Berman, que me parece exemplar para o entendimento do tema aqui abordado. Segundo ele, um Mullah, autoridade em lei e teologia islâmica, ao ser convocado para julgar uma disputa, agiu do seguinte modo: ao queixoso, disse: “creio que você tem razão”. Ao ser pedido, pelo escrivão, que ouvisse também a defesa e diante dos belos argumentos desta, respondeu: “Acredito que você está certo”. Horrorizado o escrivão retrucou que não era possível que os dois estivessem corretos, ao que o Mullah, contestou: “você também está certo”.
A postura, segundo Da Matta, do Mullah em querer conciliar as partes, é exatamente a imagem da “ética dupla” brasileira. O nosso famoso “jeitinho” em querer apaziguar, a partir da idéia de que “todos têm razão”, representa uma tentativa de manter a honra dos implicados ou, muitas vezes, expressa a impossibilidade de parâmetros quando “todos têm o rabo preso”. Compaixão (para “nossos”) e justiça (para “outros”) formam a difícil dialética que constitui a ética como instrumento de gestão pública (Da Matta, 2001). Pensar uma mudança nas estruturas da administração pública implica, para Da Matta, em posições menos demagógicas e mais profundas que, necessariamente, passam por uma forte e irrevogável dimensão moral no âmbito da administração pública (Da Matta, 2001).
Longe da velha associação entre fins e meios, que no Brasil sempre esteve ligada aos objetivos políticos imediatos, é necessário sermos capazes de questionarmos esta associação, posto que nem sempre a combinação entre fins e meios é moralmente aceitável. Lembra-nos Da Matta: “Ser ético, porém, conduz a um exame permanente entre meios e fins” (Da Matta, 2001).
Finalmente, reavaliar esta famosa combinação é rediscutir velhas expressões tais como: “roubo, mas faço!” ou “em política vale tudo!”. É preciso a formação da consciência de que honestidade pública não rima com familismo, clientelismo ou corporativismo. Infelizmente a reciprocidade ainda parece ser a marca, segundo Da Matta, da vida nacional: “dou para receber” (Da Matta, 2001a). Embora assumida de várias formas o que está em jogo é a clássica formulação, já questionada por muitos filósofos ao longo da história, “aos inimigos a lei; aos amigos, tudo”. Sem dúvida, para os interessados em entender a formação social brasileira, pensar a corrupção na esfera pública, é um belo caminho que conduz à nossa história e, principalmente, ao nosso projeto de futuro para instituições como, por exemplo, a Universidade pública que, por princípio, deve ser espelho e espaço constante de formação, não somente de profissionais comprometidos eticamente com a construção de uma sociedade menos marcada por privilégios e impunidades, mas com o estabelecimento de um espaço institucional eficiente que, como bem ressalta Da Matta, dissemina atitudes que propiciam a superação das redes de relações pessoais (Da Matta, 2001). Do contrário permaneceremos vivendo em sociedade em que “os seguidores da lei são classificados como otários, o “gato” e os assaltos aos bens públicos são correntes. O crime contra o Estado não é desvio, é oportunidade” (Da Matta, 2001).
Estou em perfeito acordo com aqueles que acreditam, Da Matta é um, que é preciso irmos, caso queiramos de fato crescer enquanto sociedade democrática, além do velho discurso ético demagógico de defesa do universal que não abre mão dos particularismos. E, neste sentido, a filosofia é uma forte fonte de diálogo. Uma filosofia que por sua vez seja capaz de sair dos guetos departamentais e assumir sua real função junto às Ciências Humanas. Felizmente, enquanto isto não acontece, temos pensadores como Machado de Assis, Gilberto Freyre, Darci Ribeiro, Antônio Cândido, Roberto Da Matta e tantos outros, ensinando-nos e abrindo caminhos para um frutífero diálogo sobre o mundo que nos cerca.
Currículo
Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1996), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (1998) e doutorado em Filosofia - Universidad de Salamanca (Espanha-2004). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia Antiga e Medieval, atuando principalmente nos seguintes temas: Neoplatonismo, Estoicismo,mistica, niilismo e filosofia da religião. É autor do livro Compreender Plotino e Proclo (2006) e membro das sociedades científicas: SIAEN (Sociedade Ibero-americana de Estudos Neoplatônicos) e SIEPM SOCIÉTÉ INTERNATIONALE POUR L ÉTUDE DE LA PHILOSOPHIE MÉDIÉVALE.
Mais informações em
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