Antônio Carlos dos Santos
17/02/2009
Um dos maiores dilemas do homem é a relação que ele estabelece com o bem e o mal. Todo o mundo se auto-proclama ético, cumpridor de seus deveres e obrigações, mas todo o mundo também comete equívocos, erros e, por vezes, ações anti-éticas. São Paulo já se perguntava por que fazia o mal que não queria e não fazia o bem que tanto desejava. O fato é que o bem e o mal são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo parto e tentamos a todo custo separá-los, ora para divinizar o bem ora para satanizar o mal. Será que somos tão santos e castos a ponto de nos auto-intitularmos “incorruptíveis”? Será que podemos dizer simplesmente que “desta água nunca beberemos?” Que “os outros” são o inferno (para lembrar Sartre) e por isso detentores do mal?
Um bom ponto de partida para essa discussão é pensar o último filme sobre Batman: “Batman: o Cavaleiro das Trevas”, dirigido por Christopher Nolan. Toda a discussão, nesse filme, gira em torno da ética. O homem-morcego, como todos sabem, é um mascarado que usa de artifícios não absolutamente éticos para promover a justiça e a segurança numa cidade infestada de violência, mas ele não é super-herói ao modo do Superman, por exemplo, que tem poderes excepcionais. Batman é humano, tem limites e dilemas pessoais: casar-se com a mulher que ama (levando em conta o sucesso pessoal) ou abrir mão dela (e da satisfação individual) e defender a cidade? O que deve vir primeiro: “a minha” felicidade ou a de todos, mesmo que para isso tenha que “me” sacrificar pessoalmente? Todas essas questões são conflitos internos que atingem todo grande abnegado, mas o que torna esse Batman particularmente interessante é que ele avança e aprofunda os seus conflitos na relação que estabelece com o Coringa.
O Coringa é o vilão, o bandido da máfia de Gotham City. A versão original conta que, certa vez, sendo perseguido pela polícia e por Batman dentro de uma fábrica de produtos químicos subiu em uma plataforma e lá lutou contra Batman, que o derrubou dentro de um recipiente. Depois que a polícia e Batman foram embora ele saiu do tonel, desfigurado. Seu rosto havia perdido a cor, o corpo também estava branco, os cabelos coloridos e os lábios infeccionados, vermelhos como sangue. A partir daí, ele se tornou um psicopata. O seu estado físico denota o seu estado psíquico, mas o Coringa tem outras características: é inteligente, bem humorado e usa armas inspiradas na comédia. O riso debochado é um outro artifício pelo qual desconcerta suas vítimas e tenta passar uma imagem de brincalhão. No fundo, esconde sua própria fragilidade. Nesse estado de insanidade, é um combatente hábil, capaz de segurar uma briga contra Batman e algumas vezes sobrepujá-lo.
O que torna esse Coringa de Nolan peculiar é a sua agressividade, além da interpretação extraordinária de Heath Ledger. Desde as primeiras cenas do filme, sentimo-nos inquietos com sua presença. Ele incomoda, provoca, cutuca nossos valores fundados na idéia de ordem e de bem. Como todo bom vilão, não confia em ninguém e por isso não tem amigo, mas comparsa (para lembrar La Boétie), que logo o mata, quando não mais precisa dele. O seu objetivo não é acumular dinheiro, como querem os mafiosos, a quem ridiculariza, mas destruir a cidade por meio de medo constante. Neste aspecto, esse Coringa é altamente niilista. O Niilismo é uma corrente filosófica do século XIX que busca a desvalorização e a morte do sentido, declarando a ausência de finalidade e de resposta ao “porquê”. Para os seus adeptos, os valores tradicionais se depreciam e todo princípio absoluto se dissolve como a água por entre os dedos. Todas as verdades e valores tradicionais são despedaçados e nada fica em seu lugar. O Coringa de Nolan tem necessidade de “chacoalhar” a cidade, tornando-a caótica, pois tudo nela está calcado em valores ultrapassados e ele visa combatê-los.
Também neste aspecto há fortes semelhanças entre Batman e o Coringa. A primeira delas é que ambos são mascarados. Ambos usam falsos nomes e referências para poder existir. Ora, a não-revelação da própria identidade já não sinalizaria aí uma aproximação dessas duas forças supostamente tão antagônicas? Ambos se perguntam porque os homens agem ora visando o bem e ora visando o mal. Batman, sempre sério (mesmo na hora de dar um beijo na mulher que ama), parece uma pedra sem nenhum sentimento. O Coringa, duelando com Batman, convida-o à vida animada e divertida, por meio da emoção. Ambos, na verdade, ainda se encontram nessa luta da razão e da paixão: na qualidade de psicopata, o Coringa não vê limites; no papel do bom moço, Batman só pensa em neutralizar racionalmente o vilão, mesmo que para isso tenha que grampear todos os celulares da cidade. Aqui, mais uma vez, eles se encontram. No fundo, a discussão subjacente é a velha frase, atribuída a Maquiavel, injustamente, de que os fins justificam os meios. Para rir e animar-se, o Coringa precisa destruir a cidade e por isso usa de todos os meios; mas Batman, para esclarecer crimes e encontrar o Coringa não tem pudores em solicitar ao amigo que veja o circuito de TV e escute as conversas dos celulares clandestinamente. A fim de chegar a seus fins almejados, ambos usam meios e subterfúgios escusos.
Uma reflexão profunda do filme jamais admitiria um relativismo rasteiro. Dizer que o bem e o mal são meros pontos de vistas distintos seria um erro lamentável. Por exemplo, enquanto o Coringa quer difundir o caos o tempo todo na cidade, Batman tenta por ordem. Enquanto o vilão tem nas mãos gasolina, pólvora e dinamite, elementos brutos, o bom moço usa uma parafernália tecnológica de terceira dimensão para combater seu inimigo. De fato, o tempo todo do filme, e isso é notável, o bem e o mal existem, não se misturam mas acabam entendendo um ao outro pela disputa por seus valores ou contra-valores. Essa análise, para um puritano como Kant, por exemplo, seria inaceitável. Para esse filósofo do século XVIII prussiano, a verdade nunca deve ser confundida, mesmo que seu objetivo seja atingir fins grandiosos. Assim, se um nazista bater à minha porta e perguntar se guardo um judeu (se efetivamente eu guardo) devo dizer sempre a verdade, mesmo que para isso custe a vida do fugitivo. Ora, o mal é a ausência do bem, já disse Santo Agostinho, e o bem é aquilo que dá valor a toda ação boa e virtuosa por excelência. Se partirmos do pressuposto de que os homens agem por meio de valores e princípios entenderemos que ninguém é tão mal a ponto de ser incapaz de uma ação boa nem tampouco bom demais e impossível de uma ação má. Por isso mesmo Batman não mata o Coringa nem tampouco o inverso: ambos são condenados a viver eternamente numa relação de força, de conflito de valores (ou contra-valores) entre o bem e o mal.
No fundo, para concluir, tendemos a condenar o Coringa de forma crassa. De fato, sua ação é pérfida, seus traços destruidores são mortíferos, seu “vale-tudo” é de um ressentimento atroz e ele merece o castigo final. Como dizem, porém, os paulistas, “não podemos jogar a água do bebé com ele dentro”: o Coringa nos ensina, através de crítica mordaz, a fragilidade de muitos dos nossos argumentos, de nossas concepções, de muitos de nossos critérios de verdade e de valores. Vale lembrar mais uma vez Sartre, quando diz que “o inferno são os outros”. No entanto, continua ele, “inferno pior seria sem a presença do outro na nossa vida”.
Professor de Ética e Filosofia Política da Universidade Federal de Sergipe. Em Programa de Pós-Doutorado no Canadá