Sex, 23 de setembro de 2011, 12:08

Deus: "A mão que afaga é a mesma que apedreja?"
Deus: "A mão que afaga é a mesma que apedreja?"

Cícero Cunha Bezerra


16/06/2009



A relação entre o homem e deus (es) é algo que remonta, ao que tudo indica, a tempos extremamente remotos. Gregos, árabes, índios, asiáticos, enfim, para deus (es) parece não existir fronteiras culturais. Isto não é uma “profissão de fé”, da minha parte, mas uma simples constatação antropológica: pese às inúmeras diferenças conceituais, não há registro histórico de um povo sem culto à divindade(s). Dito isto, gostaria de refletir um pouco sobre a relação cristã de Deus como “causa” e, ao mesmo tempo, “amor” do modo que ocorre nos dias atuais. Meu objetivo é, neste pequeno texto, demonstrar como esta associação gera inúmeras confusões que, no atual debate entre teístas e ateístas, enfraquece os argumentos dos primeiros.

A noção de Deus como “causa primeira” de todas as coisas, embora figure no texto bíblico, encontra suas raízes teóricas, no pensamento platônico e, mais formalmente, na filosofia aristotélica. Quando Platão formula, na sua obra República, sua concepção do “bem” como fim para o qual todas as coisas tendem, ainda que não estivesse tratando de um “bem-deus”, mas somente retirando conseqüências ético-morais das ações humanas, possibilitou a uma tradição posterior, formular a existência de um “Bem” último não somente para nossos atos, mas para a própria vida como um todo. É neste sentido que, por exemplo, Santo Agostinho (354 d.C) compreenderá, graças à leitura dos neoplatônicos de Platão, que Deus é princípio e fim de todas as coisas. Do mesmo modo, quando Aristóteles postula, na sua Metafísica, seguindo a relação física de “causa e efeito”, a existência de um princípio último que é “causa incausada” ou “motor imóvel” de todo movimento, ainda que não tratando de um “Deus criador”, permitiu que a teologia medieval, pensasse a existência de uma Causa que justificasse a geração e a corrupção dos seres. Tomás de Aquino é, sem dúvida, o representante maior de uma tradição que buscou, na razão e no mundo físico, a expressão de uma regularidade em que todos os efeitos derivariam, necessariamente, de uma causa e, nesta perspectiva, seria possível postular uma causa última que não somente garantiria o princípio de “causalidade”, mas que explicaria a criação (efeito) que é o próprio mundo, a partir de uma “Causa-Princípio/Fim” que é Deus.

Com relação a Deus entendido como “amor”, o caminho é bem mais complexo já que o politeísmo antigo, embora possibilitasse o postulado, como no caso de Aristóteles, de uma causa para os processos naturais, inviabilizava a afirmação de um único deus sob o caráter do amor. Lembremos que, desde Empédocles de Agrigento (495/490 a.C) amor e ódio são forças constitutivas da natureza e, portanto, possuidoras de um mesmo estatuto ontológico. Contudo, a longa tradição que remonta ao texto bíblico, particularmente ao Novo testamento, já que “Cristo é amor”, obrigou pensadores como Filón de Alexandria, Gregório de Nisa, Dionísio Pseudo-Areopagita, entre outros, a buscarem formas de conciliações entre a mensagem paulina e a tradição filosófica grega. Se para Platão éros não podia ser pensado como um deus, mas como um daimon e, neste sentido, uma “atividade” que conduz à unidade, para os platônicos dos primeiros séculos da nossa era, éros e ágape, são expressões de um Deus/Uno e Único que, por amor, se fez “carne e habitou entre nós”. É bem verdade que justificar esta associação não foi nada fácil. Na tradição árabe, Averróis (1126 d.C) foi um dos que questionou, fervorosamente, a identificação realizada pelos cristãos entre o “motor imóvel” de Aristóteles e o Deus criador, mas, no geral, a teologia e filosofia ocidentais aceitaram e difundiram a “boa nova”. Hoje, dificilmente, para um cristão é possível separar Deus e amor. Até ai nada a dizer. O problema está exatamente quando se tenta argumentar ou justificar fatos, catástrofes ou ganhos a partir deste “Deus-Causa-Amor” que, paradoxalmente, parece atuar e amar de modo muito “particular” a uns e a outros não; do mesmo modo é tido como causa de alguns acontecimentos, mas não de outros. Sei que para um crente, o que direi aqui não faz sentido, mas vejamos o que acontece na prática.

Quem ainda não viu nos vidros dos automóveis adesivos com frases do tipo: “Deus me deu este carro” ou “Este carro é conduzido por Deus”? Eu, particularmente, sempre que estou dirigindo e encontro, principalmente a segunda frase diante de mim, aplico, imediatamente, o princípio de “direção defensiva”: manter-se distante, pelo menos, 10 metros. Mas, enfim, ainda não vejo nisto maiores problemas, embora não concordando com o uso de mensagens no trânsito, pois já bastam as inúmeras ofertas à nossa volta. O pior ocorre quando na ocasião de um acidente, principalmente aéreo, somos obrigados a ouvir explicações, na maior rede de televisão do país, do tipo: “Deus sabe o que faz”, “Tudo tem sua hora”, “voce foi salvo”, etc. O absurdo chega ao ponto de pessoas que, por inúmeros motivos, desistiram de um determinado vôo serem citadas como “afortunadas”, “agraciadas” e “escolhidas” por Deus. Minha pergunta é: e os passageiros, dentre os quais estavam crianças, pessoas que viveram lutando pela sobrevivência de outros, profissionais liberais, pessoas que iriam visitar parentes, e que morreram, foram condenadas? A esta pergunta um aluno me respondeu: é que Deus é o Deus da vida! Eu pergunto: da minha ou da criança inocente lançada no fogo de uma explosão aérea?

Para igrejas ou programas de televisão que sobrevivem, em grande medida, de sentimentalismo, nada mais coerente do que entrevistar imediatamente os “escolhidos”. Temos explicações para todos os gostos: “um telefonema salvou um casal”, neste caso nada contra, o problema é concluir que não foi “ o telefonema” em si. Alguém normalmente poderia dizer que foi salvo por um telefonema e não haveria problema na compreensão deste enunciado, no entanto, a questão está na pressuposição de que foi “Deus” que fez com que o agente de viagem ligasse para o casal e informasse que a passagem foi transferida, dito de outro modo, Deus foi “a causa” da salvação “do casal”. Nesta hora, movidos pelo impacto do acidente, as pessoas se esquecem que diariamente funcionários ligam para inúmeros clientes dizendo que o vôo está cancelado e que eles serão remanejados para outros vôos, nem por isso, um acidente acontece. Aqueles que permanecem no vôo viajam tranquilamente e os demais, transferidos, também.

Outra explicação é a famosa frase: “não era a sua hora”. Pergunto: hora de quê? De morrer? Porque a idéia geral que a frase expressa é que tudo tem “um tempo”, neste sentido, pobre recém nascido que viaja e morre. Que destino tão cruel. Nascer, gerar alegria e morrer subitamente. Bom, mas para os que assim pensam, “Deus tem um plano” e, inclusive, a morte súbita de uma criança estaria prevista. O fato é que se isto é assim, as companhias aéreas deveriam começar a colocar ações na justiça contra os que pedem reparação financeira. Ora, seguindo o argumento anterior da “hora de cada um”, a companhia não teria, em nenhum aspecto, responsabilidade sobre o acidente. O diretor da companhia poderia perfeitamente argumentar: “sinto muito, mas era a hora de todos morrerem”. Algum familiar, pergunto, abriria mão da indenização?

De modo que é bastante fácil, principalmente na hora da dor, separar aquilo que serve de consolo para uma parte (os que se salvaram) daquilo que não se aceita e que deve ser reparado (para os familiares dos que morreram). É bastante comum ouvirmos, para os que se salvaram, “agradeça a Deus pela vida, voce merece seguir em frente” e, para os familiares dos que morreram, “é isso mesmo, Deus tinha um plano melhor para ele(a)”. Poderíamos dizer então que, em relação a Deus,“a mão que afaga é a mesma que apedreja?”. Com estes simples exemplos quero somente apontar para as contradições que argumentos do tipo “teológicos” acarretam quando buscam explicar problemas que seguramente tiveram causas, mas que não se enquadram em planos teleológicos ou sobrenaturais. Nestes casos, nada mais aconselhável do que a sobriedade da razão que aponta para problemas de ordem mecânica, naturais, humanas, mas jamais divinas, pois do contrário não teríamos como escapar ao velho problema da responsabilidade de Deus no mundo.

Finalmente, não vejo nenhum conflito entre voar rezando ou lendo um jornal. Na hora da turbulência cada um reage de um modo determinado, mas o temor é sempre visível. Por sinal, gosto da comparação da vida com um avião, ou seja, embora dividido em classes (primeira, econômica, turística) e com tratamentos diferenciados, estando no ar, crentes ou ateus, todos se igualam na esperança. Para o crente a fé em Deus, para o ateu, a confiança no bom funcionamento dos aparelhos e na perícia do piloto, mas no fundo, ambos sabem que nem sempre essas coisas bastam e o avião poderá cair.


Currículo
Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1996), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (1998) e doutorado em Filosofia - Universidad de Salamanca (Espanha-2004). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe e colaborador no Programa de Posgraduação em Filosofia da UFRN. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia Antiga e Medieval, atuando principalmente nos seguintes temas: Neoplatonismo, Estoicismo, Mistica, Interfaces entre Neoplatonismo e literatura, Arte abstrata e filosofia da religião. É autor do livro Compreender Plotino e Proclo (Vozes: 2006) e membro das sociedades científicas: SIAEN (Sociedade Ibero-americana de Estudos Neoplatônicos) e SIEPM SOCIÉTÉ INTERNATIONALE POUR L ÉTUDE DE LA PHILOSOPHIE MÉDIÉVALE . Para textos online acessar: http://cicerocunhabezerra.blogspot.com/


Atualizado em: Sex, 23 de setembro de 2011, 12:08
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