Petrônio Domingues
13/01/2010
Neste ano comemora-se oitenta anos do movimento dos Annales. O marco inicial desse movimento foi 1929, quando os historiadores franceses Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram a revista Annales d’Histoire Economique et Sociale, revista que significou um verdadeiro divisor de águas no processo de renovação da historiografia francesa. Em quais aspectos o movimento dos Annales se diferenciava da prática historiográfica tradicional que remontava ao século XIX? Em linhas gerais, o movimento preconizava, em primeiro lugar, a história de todas as atividades humanas, mas, na prática, houve o abandono da história política, com as narrativas de eventos protagonizados pelos grandes vultos; em seu lugar, investiu-se nos territórios da história social e econômica, trazendo as diversas camadas sociais para assumirem a agência histórica.
Em segundo lugar, o movimento defendia a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema. Na história tradicional, narrava-se os eventos políticos, recolhidos nos próprios documentos, em sua ordem cronológica, “tal como se passaram”. A história-problema apontou a impossibilidade de narrar os fatos históricos “tal como se passaram”. Por ela, o historiador sabe que escolhe seus objetos no passado e os interroga a partir das questões do presente. Na história-problema, o pesquisador apresenta seus pressupostos e conceitos, seus problemas e hipóteses, seus documentos e suas técnicas e as formas como as utilizou. Isto é, o historiador escolhe, seleciona, interroga, conceitua, analisa, sintetiza, conclui. Por esse novo viés, a pesquisa histórica é a resposta a problemas postos no seu início e verificação das hipóteses possíveis.
A história tradicional considerava os fatos como já presentes nos documentos, cabendo ao historiador apenas o trabalho de compilá-los. Já para o movimento dos Annales, o historiador não é um mero compilador de documentos, colecionador de fatos, mesmo porque o fato histórico não existe per si, ele não é um dado auto-evidente, mas produto de um processo de construção, já que os documentos não trazem em si mesmos um único significado, nem gritam ou dizem o que significam. Os documentos nem falam, nem trazem evidências; eles são levados a dizer algo por quem os diz, eles são levados a serem vistos por quem os põe em evidência. Em síntese, o fato histórico é uma construção.
Em terceiro lugar, o movimento dos Annales desenvolveu o “método retrospectivo”, uma nova dialética do presente/passado. O historiador não pode negligenciar o presente que o cerca; ele precisa olhar em torno de si, conecta-se com as questões de seu presente, para, a partir dele, interrogar e explicar o passado. No limite, o passado não é compreensível fora de uma problematização suscitada pelo presente. Convém ao historiador, assim, remontar o fio do tempo, fazendo o caminho do mais conhecido, o presente, ao menos conhecido, o passado, para conhecê-lo mais. A história, enquanto ciência dos homens no tempo, “une o estudo dos mortos ao dos vivos”.
Em quarto lugar, o movimento dos Annales preconizava o alargamento da grade temática investigativa e um novo conceito de fonte histórica. No seu livro Combates pela História, Lucien Febvre já evocava a necessidade de se pesquisar a história da morte, do amor, da alegria, do ódio, da crueldade, do medo, enfim, a história de uma miríade de temas antes ausentes do nosso ofício. Simultaneamente, o movimento formulou um novo conceito de fonte histórica, ampliando o “arquivo do historiador”. A história pode (e deve) ser feita com todos os documentos, ou seja, com todo e qualquer vestígio do passado. Para o movimento dos Annales, o historiador não pode se resignar diante de lacunas das fontes escritas tradicionais, razão pela qual deve procurar explorar fontes de outro gênero, como literatura, imagens (iconografia), obras de artes e utensílios arqueológicos. Como escreveu Febvre, “a história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos, Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem”.
Portanto, o historiador deve ser criativo, imaginativo e engenhoso, para conseguir vencer o
esquecimento, preencher os silêncios, recuperar as palavras e a expressão vencida pelo tempo.
Em quinto lugar, o movimento dos Annales apostava na interdisciplinaridade, proclamando a colaboração da história com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a antropologia, entre outras. O historiador deveria se apropriar, seletivamente, das teorias, dos métodos, dos conceitos e das técnicas de análise e pesquisa das ciências sociais. Dessa apropriação, apareceram ciências compostas, como história social, histórica econômica, geo-história e, depois, história demográfica, história antropológica etc. Em sexto lugar, o movimento dos Annales postulava a construção da “história-total”. Essa expressão pode ser lida em duplo sentido, isto é, pode querer dizer a história de “tudo” e “todo”. No primeiro sentido, seria a ampliação do campo histórico, a concepção de que “tudo é história”, não havendo mais fronteiras para a atuação do historiador; já no segundo e mais provável sentido, seria a pretensão de apreender o “todo” de uma época, seria uma abordagem holística de uma sociedade.
Desde a sua fundação, em 1929, até os dias atuais, a revista Annales passou por três ou quatro grandes fases, com avanços, recuos, estagnações e mesmo contradições. Porém, nesse aniversário de 80 anos, o que importa destacar aqui é que as inovações produzidas pelo movimento dos Annales foram profundas e significativas: desde a incorporação de novos objetos e a ampliação do campo de atuação do historiador, passando pela descoberta de novas fontes, abordagens e problemáticas, até o desenvolvimento de novos conceitos e ferramentas analíticas. Independentemente do balanço que se faça, uma coisa é certa: a partir do movimento dos Annales a historiografia ocidental não foi a mesma, pois, se no início o movimento ficou circunscrito à França, com o tempo ele se expandiu e seus postulados foram assimilados, em
maior ou menor grau, pelos historiadores de vários rincões, inclusive, do Brasil.
Artigo publicado no Jornal da Cidade, em 29/12/2009. Trata-se de uma versão resumida da palestra proferida pelo autor na IX Semana de História da Universidade Federal de Sergipe, em 24 de novembro de 2009.
Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.