Marcelo Alario Ennes
02/03/2010
O início da “Era da Cotas” deverá colocar na ordem do dia da Universidade Federal de Sergipe o debate sobre o modelo de universidade necessário e desejável para que se cumpra a finalidade inclusiva das políticas afirmativas. Representa, assim, uma importante oportunidade para se repensar e redefinir, em especial, as políticas acadêmico-pedagógica e de assistência estudantil.
Existe um relativo consenso entre docentes de várias áreas de conhecimento que vê a necessidade de rever o modelo pedagógico dos cursos de graduação da universidade. É bom que se diga de modo claro que essa já é uma tarefa que está atrasada e já deveria estar em curso independentemente das políticas afirmativas. Trata-se de uma mudança que já deveria ter ocorrido e, agora, com as cotas, temos uma nova oportunidade de discutir e operacionalizar essa mudança. Claro que algo tão complexo não pode ter uma fórmula única para todas as realidades vivenciadas pelos cursos ofertados pela UFS. Mas é possível aqui propor alguns princípios norteadores.
O fato é que é necessário reconhecer que muitos alunos ingressam na universidade sem conseguir ler e interpretar adequadamente textos (seja de Literatura, Sociologia ou um enunciado de Matemática ou Física) e, também, sem o domínio básico para se cursar cálculo I e outras disciplinas iniciais dos cursos da área de exatas. Se essa falta de “bagagem” dos alunos que ingressam na universidade é ruim, muito pior é a possibilidade deles saírem sem tê-la adquirido. Igualmente ruim, é a alternativa de manter os altos índices de reprovação e evasão em algumas disciplinas de alguns cursos. Isto é, não se pode conceber a aprovação e a reprovação de modo indiscriminado e naturalizado.
A universidade como um todo e seus cursos dentro de suas particularidades precisam criar mecanismos que garantam aos graduandos a “base” necessária para que possam dar continuidade ao seu curso. Na prática, isso deveria significar que se o aluno não compreende o que lê, não consegue se expressar oralmente e por meio da escrita e não tem domínio sobre operações básicas da matemática, então ele não pode dar continuidade ao seu curso, sem que isso signifique reprovar o aluno. Uma saída pode ser a realização de uma avaliação inicial realizada pelos professores das disciplinas básicas, que definirá se o aluno será direcionado para prosseguir o seu curso, ou ingressar em um programa que lhe dê a “base” necessária.
As estratégias de “nivelamento” deverão ocorrer no primeiro semestre letivo e podem unir alunos de diferentes cursos e diferentes áreas. A idéia é que dominem um conhecimento comum a todos que ingressam e se formam no ensino superior.
Os alunos que demonstrarem o domínio adequado ou aqueles que cumprirem com sucesso o programa de “nivelamento” devem dar continuidade ao seu curso. Esse segundo momento carece também mudanças profundas. Sou formado em Ciências Sociais e sou lotado em um Departamento de Educação no Campus Prof. Alberto Carvalho em Itabaiana e, honestamente, com base em minha formação acadêmica e nos meus vinte anos de experiência no ensino superior, não vejo muito sentido em desenvolver os conteúdos de minhas disciplinas sem que elas estejam profundamente articuladas com a formação do profissional e do cidadão que o curso e o ensino superior deseja. É, portanto, necessário um projeto pedagógico que materialize a tão decantada interdisciplinaridade e articulação entre o ensino, pesquisa e extensão que permitam a formação crítica e consistente. Existem propostas e iniciativas como a “Aprendizagem Baseada em Problemas” e a “Universidade Nova” que precisam ser estudadas para que possamos construir nosso “modelo”.
Trata-se de iniciativas radicais que precisam ser pensada e executada com planejamento e bom senso. Por outro lado, essas mudanças estão em contradição, ao menos, com o modo de entrada e o tempo de saída da universidade. A primeira contradição orienta as provas dos vestibulares. Como podemos esperar alunos criativos, autônomos e críticos se seu ingresso é feito de uma prova com profundo caráter punitivo? É lastimável termos menos vagas do que as necessárias considerando a demanda existente, situação que se agrava com um processo seletivo que tende apagar e sufocar a capacidade de iniciativa e a energia transformadora da juventude.
A segunda contradição refere-se a uma lógica generalizada de aceleramento dos cursos de graduação no Brasil todo, seguida pela UFS. Talvez isso seja possível, em um outro cenário, onde a educação básica possa cumprir com sua parte e que o pais como um todo já tenha rompido com uma inércia que nos mantém presos a uma tradição elitizada e elitizante do ensino superior e, portanto, que tenhamos superado o atual estágio de ilhas de excelência e oceanos de atraso.
Mas para tornar possível esse “ajuste estrutural”, operado pela e no interior da universidade, é imprescindível a ampliação e a consolidação da política de assistência estudantil nas universidades públicas e na UFS em particular. Aos alunos deve-se garantir condições de permanência na universidade para que não tenham a obrigação de cumprir dupla jornada dividindo seus dias e suas vidas entre o emprego e o estudo. Claro que não devemos impedir que o alunos possam trabalhar enquanto estuda, o que dentro do razoável pode até contribuir para sua formação. Mas se queremos um Estado e um País com uma base sólida no que diz respeito à formação e à qualificação de nossa mão-de-obra especializada devemos parar de dizer que os custos para manter esses estudantes na universidade é muito alto. Trata-se, na realidade, usando aqui o “mote” dos cursos preparatórios privados, de investimento e não de custos.
Por sua vez, é necessário que a assistência estudantil esteja orientada por uma política de contrapartida, tema que deve, também, ser alvo de um amplo e democrático debate. Mas de início pode-se pensar no vínculo desses estudantes, quando necessário, aos “programas de nivelamento” (acima mencionados) e aos programas de monitoria, extensão ou iniciação científica entre outros.
Como podemos notar, para que possa cumprir com seu papel transformador na sociedade sergipana, a UFS deve, ela mesma, auto-transformar-se. Essa parece ser uma das chaves para o enigma sobre a incapacidade das universidades intervir com radicalidade na sociedade, ou seja, uma pessoa, um partido, um profissional, uma instituição não podem transformar algo, sem que transforme a si próprios.
Doutor em Sociologia. Docente do Departamento de Educação e Diretor do Campus Prof. Alberto Carvalho/UFS/Itabaiana. Docente dos Programas de Mestrado em Sociologia e Desenvolvimento e Meio Ambiente/UFS. m.ennes@uol.comm.br . http://m.ennes.blog.uol.com.br"