Saber Ciência / Márcio Santana
08/06/2010
Se houver um estilo musical que possa funcionar como uma espécie de trilha sonora da poesia de Augusto dos Anjos, que se assemelhe nas temáticas, e que se harmonize em atitude poética, esse estilo deve ser o Fado. Nada é tão melancólico, dolorido e tristonho quanto essa música que - onde quer que se tenha originado, Portugal ou Brasil - se tornou expressão particular e genuína do espírito português.
Essas ligações não são fortuitas nem intrusões que o próprio autor não autorizaria. Pelo contrário, ele mesmo confessou isto e traçou claramente essa ponte sobre o Atlântico em ‘O Bandolim’ – um soneto que originalmente apareceu em jornal e foi depois incluído entre os ‘Outros Poemas Esquecidos’.
Enquanto a palavra ‘música’ aparece apenas cinco vezes em sua obra, e apenas uma vez a palavra ‘som’, esse soneto é construído sobre um tema musical específico, do início ao fim: é a dissertação acerca de um determinado tipo de música, e a tentativa de descrever objetivamente os efeitos subjetivos que essa música suscita no eu-lírico.
Assim como a lírica de Augusto é uma canção de vencido, de quem está ‘fadado’ a findar, assim também o Fado é canção de vencido, pelo próprio termo que designa este estilo, por seu ritmo, por seus temas, e pela forma como é tradicionalmente cantado ainda hoje em Lisboa e Coimbra, por exemplo.
Se encontram nessas cantigas os mesmos ‘aromas de luz e de lama’ - no verso de Pedro Homem de Melo - que vão nos poemas daquele paraibano. O olhar de Augusto a respeito do princípio de morte que se entranha na vida é semelhante ao olhar do fadista que se depara com o povo lavando a roupa no rio, no desempenho das atividades para manutenção da vida diária, e percebe ser ele o mesmo povo que, um dia, talhará ‘com seu machado as tábuas do meu caixão’, para encerrar o espetáculo da morte.
A motivação do fadista para o canto quase nunca é a alegria: ele é aquele que geralmente canta por estar sofrendo, ou melhor, canta seu sofrimento; uma vez que seu canto é sobretudo desabafo: ‘Sinto que a alma / cá dentro se acalma / Nos versos que canto (...)’. Ele sabe que quando ‘se tem um desgosto, o pranto no rosto / Nos deixa melhor’.
O fado é o canto de quem percebe ter um urubu pousado em sua sorte. A expressão de mágoa de quem nada pode fazer para mudar sua sina, restando apenas lamber suas feridas, remoer as tristezas. Nas palavras do compositor Alberto Janes: ‘Não sei, não sabe ninguém / Porque canto o fado neste tom magoado / De dor e de pranto (...) / Foi Deus, que me pôs no peito, / Um rosário de penas que vou desfiando e choro a cantar’.
E mesmo se essa tristeza não se expressar em termos de ritmo, como quando incorpora um compasso mais ágil, o conteúdo, a letra do Fado permanece triste. É assim que, por exemplo, no frenético ‘Fadinho Serrano’, de Hernâni Correia, se ouve o desiludido: ‘Fiar-se em mulheres é crer no diabo, / são todas iguais, / ao fim e ao cabo’; e em ‘A casa da Mariquinhas’, de Alberto Janes, a passada empolgante carrega o pessimista estribilho: ‘dar de beber à dor é o melhor...’.
Quando esteve na casa de Amália Rodrigues, em Lisboa, o poeta Vinícius de Morais registrou, num tom fanfarrão, mas que se revela verdadeiro, que ‘somos os últimos povos que amam e que cantam, e que escrevem uma poesia direita, que tenta dizer qualquer coisa’. O bandolim de Augusto dos Anjos não o deixara mentir.
Currículo
Jornalista e mestrando em Letras da Universidade Federal de Sergipe.