Ter, 27 de setembro de 2011, 11:11

Os clichês de um prêmio Nobel
Os clichês de um prêmio Nobel

Saber Ciência / Márcio Santana


08/06/2010


Ainda não li Caim, o último livro de José Saramago — e nem me animo. Na verdade, a única coisa que li dele foi Ensaio sobre a Cegueira. Depois disso, desisti. Deixe-me explicar o porquê.
Encarei pelo menos dois entraves na leitura, do ponto de vista da forma. O primeiro diz respeito à construção dos discursos. Ao invés do habitual dois pontos seguidos de travessão, as frases do discurso direto e indireto aparecem com seu início em maiúsculo, precedido de vírgula, Assim. Apesar desse modo pouco convencional, a novidade não chega a desorientar o leitor na hora de identificar que personagem disse tal frase. O recurso causa certa estranheza e aqui e acolá pede uma rápida releitura, mas é entendível, e tanto mais facilmente entendível quando se vai acostumando com ele.
Contudo, não consigo enxergar nesse recurso formal qualquer significação. Nem uma suposta busca por reproduzir o ritmo veloz da civilização moderna... Nesses tempos de discussão sobre Nova Ortografia, minha opinião é que isto é em verdade um capricho, uma idiossincrasia do autor, e que o livro poderia tranqüilamente ser repaginado de forma tradicional, sem nenhuma perda. Pelo contrário, haveria um ganho, a eliminação do segundo entrave à leitura, com os parágrafos tornados menores. Vemos quase todos os parágrafos desnecessariamente longos, prolongando-se por páginas inteiras. Em quase todos eles ocorre em algum ponto uma clara mudança de assunto, o que, se não por obrigação estilítistica, mas compaixão aos leitores, pediria uma quebra no corpo do texto.
Mas nas considerações quanto ao estilo é que tudo se complica. Embora Saramago saiba que “as frases feitas são assim, não têm sensibilidade para as mil subtilezas do sentido” (p.234), e a despeito de sua capacidade descritiva e imaginativa lhe conferir criar algumas expressões e cenas belíssimas, um recurso “estilístico” muito recorrente em Ensaio sobre a cegueira é o uso de clichês e chavões lingüísticos, ou de provérbios, ditados, e expressões populares, citadas literalmente ou desdobradas — tanto por parte do narrador como das personagens. São frases feitas, já-ditos, lugares-comuns. Listo a seguir os que a paciência me permitiu grifar durante a leitura, pedindo a paciência de quem me lê:
“Do mal o menos” (p.18); “se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão” (p.25); “a isto chama o vulgo fazer das tripas coração” (p.41); “não valia a pena trocar o certo pelo duvidoso” (p.49); “estremeceu de surpresa” (p.75); “para pouca saúde mais vale nenhuma” (p.90); “candeia que vai adiante alumia duas vezes” (p.90); “primeiro come-se, depois é que se lava a panela” (p.103); “na terra dos cegos quem tem um olho é rei” (p.103); “quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo, ou no partir não tem arte” (p.103); “quem não arrisca não petisca” (p.106); “diante das adversidades (...) é que se conhecem os amigos.” (p.107); “cada qual com seu igual” (p.109); “as lágrimas correndo simplesmente, como de uma fonte” (p.121); “Não há bem que sempre dure, nem mal que ature” (p.123); “quem paga adiantado, sempre acaba mal servido,” (p.151); “dormiam a sono solto” (p.151); “saúde para dar e vender” (p.160); “doa a quem doer, factos são factos” (p.163); “fosse o justo a pagar pelo pecador” (p.163); “Quem corre por gosto, não cansa” (p.165); “sem dó nem piedade” (p.166); “as aparências são enganadoras” (p.170); “pousou-se no seu peito com a leveza de um pássaro” (p.172); “quem tiver de morrer morrerá, a morte escolhe sem avisar” (p.175); “o diabo nem sempre está atrás da porta” (p.193); “não poderiam nem com uma gata pelo rabo” (p.196); “começamos a dar o dito por não dito” (p.197); “assim como o hábito não faz o monge, o ceptro não faz o rei” (p.204); “não há regra que não tenha a sua excepção” (p.205); “não esqueçamos que tudo na vida é relativo” (p.206); “ela é a que deita fogo à pira, não a que deve morrer” (p.206); “Deus dá a nuvem conforme a sede” (p.225); “há é que ter paciência, dar tempo ao tempo” (p.226); “como se costuma dizer, a fruta está muito escolhida” (p.231); “dêem tempo ao tempo e ele se encarrega de resolver” (p.232); “um rei com olhos numa terra de cegos” (p.245); “a experiência é realmente a mestra da vida” (p.250); “olhos que não vêem, coração que não sente” (p.250); “E como uma desgraça nunca vem só” (p.253); “veio abaixo num sopro, como um castelo de cartas” (p.255); “assim é a vida, quem não tem cão caça com gato” (p.268); “não é só na natureza que algumas vezes nem tudo se perde e algo se aproveita” (p.273); “com a ajuda dos santos, que sendo para baixo acodem todos” (p.286); “O puxador da porta é a mão estendida de uma casa” (p.289); “o fio que nos une” (p.290); “é preciso esperar, dar tempo ao tempo” (p.303).
Façamos justiça: Saramago tem imaginação e talento para contar estórias. Mas os parágrafos quilométricos, os caprichos ortográficos e, acima de tudo, todos esses clichês são um estorvo à sua leitura. Alguém já disse que ele só foi Nobel porque o leram em sueco. Essa é uma hipótese provável quando somada às razões políticas. O caso é que clichês — principalmente na quantidade apontada, e a menos que cumpram uma função diferente da de preencher um espaço em branco — não são traços de simplicidade, mas de mediocridade literária: um clichê é uma frase feita que qualquer um poderia ter transcrito, não há nenhum processo ou mérito literário no ato de colar um clichê no papel.


Currículo
Jornalista e mestrando em Letras da Universidade Federal de Sergipe


Atualizado em: Ter, 27 de setembro de 2011, 11:12
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