Maria Aparecida Silva Ribeiro
29/07/2010
A melhor maneira de se evitar uma ressaca é manter-se bêbado. Não imaginei que começaria o texto dessa maneira, mas para aproveitar a vibração do intervalo pós-festas juninas/pós-Copa e pré-eleitoral, nada como a boa e velha analogia etílica para tratar de assuntos que, embora mereçam profundidade, não podem, neste momento, contar com cem por cento de nossa atenção – estamos um tanto chapados ainda. E, em final de período na Universidade, fica sempre a sensação de que toda e qualquer discussão de fundo pode esperar por agosto. Então, essa argumentação vai assim: levinha como uma cerveja fresh, depois de um porre de conhaque de alcatrão...
A força da palavra – dita, interdita, entredita, encenada, gesticulada, vociferada – foi a grande vedete de uma copa em que os domínios da língua foram palmilhados incansavelmente pelos agentes da notícia. Nunca se deu tanta atenção aos enunciados produzidos fora de campo. A curiosidade pelo que se construía fora das quatro linhas do gramado, no nível de discurso, sobrepujou o interesse pelo que, de fato, se fez – ou não – dentro dele, no nível das jogadas. Chutes, cabeçadas, pisões, pedaladas, dribles, pontapés, a linguagem corporal de nossos onze protagonistas muitas vezes cedeu lugar, na atenção da mídia, à leitura labial que pretendia alcançar o que o técnico Dunga produzia como fala. Ainda que sua fala, em várias ocasiões, se resumisse ao prosaico PP###%%QQ&&PP!! com que nos acostumamos nas arquibancadas de nossos estádios. Por que tanto interesse por suas explosões de temperamento? Por que a valorização do “bom dia” sonegado a repórteres? Por que seus socos em vigas de metal nos doíam tanto e talvez mais até do que o gol contra – e a expulsão – de Felipe Melo? Por que seus silêncios quanto aos motivos de escolhas e preterições, praticadas antes e durante a Copa, gritavam mais alto aos nossos ouvidos do que os apitos (sempre injustos) de um árbitro (eternamente) inimigo?
Deixemos, por enquanto, o Dunga no banco, e busquemos a língua em outros terrenos.
Lembram da “corneta”, objeto sonoro que sempre serviu de extensão ao grito da torcida? Nesta copa, se chamou vuvuzela. Lembram da “bola”, palavra de sonoridade tão redonda, rolante, quanto o objeto nomeado, nesta copa era jabulani (e talvez, por isso, um tanto torta, traiçoeira). E a antiga expressão “seleção canarinho”, que remetia a meninos talentosos vestindo camisa amarela e corporificando nossos desejos de vitória? Na África do Sul, eram os bafana bafana. Nunca a variação idiomática, dialetal, as traduções e tradições interessaram tanto a torcedores, a que sempre se imputou o interesse único em decisões técnicas, em performances individuais, no condicionamento físico de um ou outro jogador, nas táticas e jogadas coletivas. Ainda que tal interesse tenha sido, efetrivamente, criado pela cobertura jornalística. O que se falava sempre foi mais importante do que o como.
Pois, desta vez, tal lógica apareceu invertida: eis que em 2010 adentram o campo neurolinguistas analisando o uso da palavra pelos líderes de equipe; psiquiatras cuidando do condicionamento emocional do técnico e de seus subordinados; sociólogos pensando as repercussões, no grupo, das atitudes mais ou menos equilibradas de seus mentores. Livros de autoajuda foram lidos, citados, topicalizados. A imprensa e seus discursos desarticuladores, subversivos e potencialmente fomentadores da baixa auto-estima daquele grupo de atletas foi, estrategicamente, afastada. O confinamento funcionou, para a seleção de Dunga, quase como um retiro espiritual, como escudo protetor, sob cuja estrutura metálica não chegassem palavras de desânimo, descrença, ceticismo, o mesmo que já inundava, antes mesmo da primeira partida, corações e mentes dos cento e oitenta milhões de técnicos brasileiros.
Ao que parece, o maior adversário da seleção brasileira, no entender de seu último técnico – ele mesmo tão pouco desenvolvido em sua comunicabilidade – era o discurso: o discurso contrário, o contra-argumento, a palavra refutada: e se, ao invés disso, se preferisse aquilo? E se este substituísse esse? E se aquele,embora distanciado de quem fala e de quem ouve, tomasse parte nisto? Será que isto também não me concerne? E se eu não aceitar isso como proposta?
Inimigo de muitas pernas e de várias cabeças, o discurso aterrorizou tanto a vida do treinador, que sua permanente recusa pelo bom dia bem pode ter significado o medo de que, através do simples gesto cotidiano de comunicação, fosse aberta uma brecha para alguma fala desautorizante invadir seu espaço.
Por outro lado, é interessante o fato de muitos jogadores tratarem seus técnicos por professor. O epíteto, além da distinção do cargo (alguém que, na lógica das relações escolares, ocupa a centralidade das falas), remete àquele que tem algo importante a ensinar; mobiliza, no grupo liderado, memórias de uma autoridade exercida com rigor, reminiscências do período escolar, a cultura da palmatória, do castigo, do dever de casa, mas também das recompensas, de aprovações, a avaliação, a classificação, que definem pertencimentos e exclusões. Ao tratar das relações de poder embutidas nos processos escolares, impossível não lembrar do texto Aula, de Roland Barthes. (São Paulo: Cultrix, 1997). Semiólogo francês que, ao proferir a aula inaugural da cadeira de Semiótica, no Colégio de França, em 1977, define a linguagem como uma legislação e a língua como seu código. E, por suas incursões nos discursos da mídia, da cultura, acaba nos incentivando a ler os mitos de nossos tempos – o sucesso, o esporte, a imprensa – todos pelo viés da linguagem e de seus usos.
De que linguagem é poder ninguém duvida. Evidência disso (e que se abra um parêntese) é o número sempre crescente de cursos da UFS que vem solicitando ao Departamento de Letras a oferta de disciplinas tais como: Produção e Recepção de Textos I e II, nas quais são desenvolvidas competências textuais, linguísticas, comunicativas dos alunos. Ou seja, embora os processos de ingresso na universidade (ainda) não priorizem o nível de proficiência dos candidatos na língua materna – essencial ao exercício de qualquer profissão – a necessidade observada, quando do início das aulas, de qualificar seu uso tem criado demandas, no sentido de ampliar tais competências durante o processo mesmo de formação nas diversas áreas do conhecimento. E haja professor de Línguas!...
Mas aí, voltando às quatro linhas, por contraste, erigimos em nossa escola a figura de outro docente: o professor Maradona. Tiozão carinhoso, beijoqueiro, brigão, meio destemperado, com um passado de abuso com drogas, com fraquezas confessas e (mal)redimidas. Não o porte do professor Dunga (trajando aliás, em alguns dias, indumentária que recendia à naftalina de fardamento militar). Mas um professor meio cabeludo, fora de peso, um tanto decadente debaixo de seu terno bem cortado. Um camarada, companheiro mais velho, cheio de histórias para contar. A leitura labial deu conta de palavras de incentivo do mestre argentino, durante as vitórias. Na derrota, até o apito final, suas palavras instavam à superação. No llora niño, foi o que o professor, que já vivera situações similares, falou ao abraçar seus meninos, depois do tango de 4 a 0 que dançaram com a Alemanha. Na volta ao país, foram recebidos como heróis de guerra. Uma surra antes das quartas de final foi o que levaram. Ainda assim, ninguém pediu a cabeça do mestre. “ A turma não foi aprovada, mas o professor era bom” parece ter sido a fala predominante. Elogios à sua performance, às fórmulas de relacionamento com o grupo e com a imprensa, era o que a mídia desportiva fez questão de veicular: Uu mestre que “articulou o grupo”.
Em síntese, diríamos que, se Dunga foi um líder que, em sua prática, perseguiu obstinadamente a coerência, Maradona foi o mestre que, por seu discurso, conseguiu a coesão. Não esquecendo que ambos são fatores básicos de uma textualidade que, nos discursos como nas práticas, é construída frase a frase, gesto a gesto. A história desta copa se contou em cada zumbido de vuvuzela, em cada desvio de jabulani, em cada palavr(a/ão) enunciado pelos bafanas daqui – meninos da vila, moleques travessos, modelos evangélicos, celebridades de última hora – liderados por anti-heróis de outras copas, paizões de nossos tempos e programadores neurais do sucesso. Suscetíveis, vulneráveis, condicionados, todos, ao uso competente da palavra – essa inebriante instituidora de realidades.
Professora Adjunta do Departamento de Letras da UFS.