Prof. Petrônio Domingues
27/08/2010
O negro sempre se fez presente no cinema brasileiro! Isto não significa dizer que ele tenha assumido o papel de protagonista ou tenha sido retratado positiva e condignamente. Em linhas gerais, o negro esteve no segundo plano da trama cinematográfica, assumindo papéis secundários, de pouca relevância ou mesmo foi condenado a interpretar estereótipos caricaturais, como escravo, serviçal, boçal, histrião, exótico, mulata lasciva, macumbeiro, favelado, malandro ou vilão de tudo que é espécie. Essas imagens, narrativas e representações pouco abonadoras foram usadas para (re)afirmar a inferioridade e submissão de um segmento que, segundo o IBGE, constitui quase metade da população brasileira. É verdade que, na produção cinematográfica do Cinema Novo, aspectos da cultura e história dos afro-brasileiros foram pautados em filmes como Rio Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos; Barravento (1962), de Glauber Rocha e Ganga Zumba (1964), de Carlos Diegues – este último, aliás, dirigiu outros filmes sobre a temática, como Xica da Silva (1976), Quilombo (1984) e Orfeu (1999) –, mas não havia um compromisso com uma linguagem ou estética antirracista. Em vez da cor dos personagens, problematizava-se a condição de subalternidade das classes populares, da patuléia que povoa o “andar de baixo”, com suas tradições, costumes e artefatos culturais.
Foi somente nas décadas de 1970 e 1980 que o negro passou a ser o personagem central, na frente e atrás das câmeras. Um dos primeiros atores afro-brasileiros a enveredar para direção foi Zózimo Bulbul. Depois de ter sido o protagonista do controverso filme Em Compasso de Espera (1969), sob a direção de Antunes Filho, Bulbul dirigiu Alma no Olho (1973), Abolição (1988) e Pequena África (2002). A filmografia de Bulbul é engajada com as questões raciais. Sua preocupação não é apenas contar a história do negro, mas de abordá-la pela perspectiva do ator dessa história. Além dele, outros afro-brasileiros se destacaram no cinema nacional, como Waldyr Onofre, Antônio Pitanga, Odilon Lopes e Agenor Alves. No entanto, o grande divisor de águas foi a década de 1990, quando cineastas e atores negros se mobilizaram para reivindicar novas formas de representação racial no cinema e na televisão. Uma das primeiras dessas mobilizações deu-se no 10º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, em 1999, com a exibição de Gênesis 22, de Jeferson De, e O Catedrático do Samba, de Noel Carvalho e Alessandro Gamo. No ano seguinte, o festival abrigou uma mostra de diretores negros. Na ocasião, o cineasta Jeferson De trouxe à baila seu manifesto Dogma Feijoada (inspirado no grupo dinamarquês Dogma, que defende um cinema sem artificialismo), preconizando sete mandamentos ou preceitos para o cinema negro: 1) o filme tem que ser dirigido por um realizador negro; 2) o protagonista deve ser negro; 3) a temática do filme tem que estar relacionada com a cultura negra brasileira; 4) o filme tem que ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes; 5) personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos; 6) o roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro; 7) super heróis ou bandidos deverão ser evitados.
O manifesto repercutiu na imprensa e no meio artístico, gerando polêmicas diversas. Nos anos seguintes, os realizadores do movimento passaram a se encontrar; criaram um nome para o grupo (Cinema Feijoada) e mantiveram um sítio na Internet até 2004. O grupo Cinema Feijoada foi a primeira afirmação pública de diretores negros. Durante a 5ª edição do Festival de Cinema do Recife, em 2001, atores e realizadores negros assinaram o Manifesto do Recife, em que conclamavam: 1) O fim da segregação a que são submetidos os atores, atrizes, apresentadores e jornalistas negros nas produtoras, agências de publicidade e emissoras de televisão; 2) A criação de um fundo para o incentivo de uma produção audiovisual multirracial no Brasil; 3) A ampliação do mercado de trabalho para atrizes, atores, técnicos, produtores, diretores e roteiristas afrodescendentes; 4) A criação de uma nova estética para o Brasil que valorize a diversidade e a pluralidade étnica, regional e religiosa da população brasileira. O manifesto foi assinado por, entre outros, Joel Zito Araújo, Maria Ceiça, Milton Gonçalves, Norton Nascimento, Ruth de Souza e Zózimo Bulbul. No mesmo festival foi exibido A negação do Brasil (2000), documentário que aborda o tratamento estereotipado dado aos personagens negros no audiovisual. Dirigido por Joel Zito Araújo, o documentário aponta a necessidade de se garantir representações étnico-raciais democráticas do Brasil. Esse mesmo cineasta dirigiu as Filhas do Vento, longa-metragem vencedor de oito prêmios no festival de Gramado em 2004: diretor, atriz (Ruth de Souza e Léa Garcia), ator (Milton Gonçalves), ator coadjuvante (Rocco Pitanga), crítica e atriz coadjuvante (Thalma de Freitas e Taís Araujo). Outro cineasta negro emergente é Jeferson De, que dirigiu curtas-metragens como Carolina (a história da escritora Carolina de Jesus, estrelada por Zezé Motta, 2003), Narciso Rap (2004) e agora estreia com Bróder!, seu primeiro longa-metragem, selecionado e exibido para concorrer no festival de Berlin, premiado com quatro estatuetas no festival de Paulínia (SP) e o grande vencedor, em 14 de agosto, da cerimônia de encerramento da 38ª edição do Festival de Cinema de Gramado, com três kikitos, de melhor filme, direção e ator.
O cinema negro brasileiro deve ser concebido no bojo de um projeto cultural inclusivo, baseado no respeito à diversidade étnico-racial e à pluralidade cultural do país. Não basta o afro-brasileiro fazer parte das tramas cinematográficas, mas sua presença tem que ultrapassar o nível dos clichês, o plano dos papéis estereotipados, caricaturais e grotescos. Não basta o afro-brasileiro fazer parte do elenco dos filmes; ele tem que interpretar papéis para além de coadjuvantes. Não basta o afro-brasileiro estar na frente das câmaras, pois chegou a hora de ele também ser o diretor das películas. Só assim é possível o florescimento de uma nova sensibilidade artística, o desenvolvimento de uma nova linguagem estética, a invenção de imagens, narrativas e representações da alteridade. Lembremos que, nos Estados Unidos, foi preciso quase um século de indústria cinematográfica para o aparecimento de John Singleton e Spike Lee, os quais, se não foram os primeiros diretores afro-americanos, têm se destacado pela notável competência técnica e artística. Mais do que um projeto, o cinema negro brasileiro é um desafio, para não dizer uma demanda de um país tão multicultural e poliétnico.
Doutor em História (USP) e Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS).