Ter, 27 de setembro de 2011, 13:08

O espírito do capitalismo: sua origem e sua essência
O espírito do capitalismo: sua origem e sua essência

Prof. Dr. Joseval M. Santana


18/11/2010


A visão sistêmica em geral denota a compreensão de uma dada realidade como um todo integrado. É, portanto, uma visão orgânica e lógica norteada pela dimensão de contexto em que se encontra o sistema em análise. A complexidade da análise sistêmica tem correlação positiva com a sua dimensão de contexto, isto é, a redução dessa dimensão leva inevitavelmente a diminuição da complexidade e consequentemente pode comprometer a análise em questão. Entretanto, o grande desafio deste artigo foi não perder de vista o entendimento quanto à origem e a essência do espírito do sistema capitalista, mesmo diante da redução da sua complexidade.



O capitalismo é um complexo sistema econômico e social que tem se mostrado ser “bem mais dinâmico do que qualquer outro que o precedeu”(GIDDENS, 2005, p. 534). Como bem enfatizou Marx (1984), a essência desse sistema é o acúmulo de capital. Entretanto, tal essência não é inerente ao capitalismo. Desde os tempos remotos diversas civilizações buscaram o acúmulo de riquezas como meio de conforto, de segurança, de prazer e de poder (GIDDENS, 2005).

Todavia, o acúmulo de riquezas no capitalismo se diferencia quando comparado com o das antigas formas de atividades econômicas. É o que pode ser deduzido do estudo de Max Weber em “A ética protestante e o espirito do capitalismo”.

Weber ao estudar o desenvolvimento econômico do Ocidente encontrou uma atitude em relação ao acúmulo de riquezas sem precedentes na história. Essa atitude foi denominada por ele de espírito do capitalismo. O embrião do capitalismo, e consequentemente sua forma peculiar de acúmulo de riquezas - o espírito do capitalismo, teve sua origem na religião, mas especificamente no puritanismo, uma variedade do Protestantismo. Por esse espírito, os primeiros capitalistas, os puritanos, buscavam o acúmulo de riquezas para o reinvestimento na expansão dos empreendimentos que dirigiam. Assim, o acúmulo de riquezas deveria ser uma espiral contínua predestinado somente a alguns indivíduos, cujo preço dessa dádiva era viver sem demonstração de opulência e de forma abnegada e fugaz (GIDDENS, 2005).

É o espírito do capitalismo que faz do capitalismo o que ele é, ou seja, uma filosofia de acúmulo contínuo de riquezas sem limites. Para tanto, o capitalismo é assegurado pela desigualdade social que tem não só garantido a sua sobrevivência, mas preconizado o seu fim como uma utopia, no sentido clássico – um conceito negativo – que, como qualquer utopia, não se realiza (SANTANA, 2009). Assim sendo, a riqueza e a pobreza são polos do mesmo eixo capitalista, a inexistência de um leva todo o sistema à entropia, ao colapso, à morte.

A pobreza está relacionada diretamente com a carência material, em especial dos recursos monetários que, por sua vez, vincula-se às desigualdades políticas e sociais. Embora essa dimensão seja crucial, não é a única. Ser pobre não significa apenas não ter, mas impedido de ter (Demo, 1980).

Por esse raciocínio, observa-se que a pobreza deriva da escassez de recursos e de poder. Porém, quando a escassez dos recursos advém da condição natural, pela finitude da natureza, não oriunda de uma relação social, não existe pobreza propriamente dita, mesmo que tal escassez leve o ser humano ao estado de miséria e fome. Sendo assim, a pobreza surge quando a escassez dos recursos é exacerbada por quaisquer formas de poder que concentrem excessivas vantagens e oportunidades a um indivíduo, grupo ou sociedade. Dessa forma, no capitalismo a pobreza é gerada por uma escassez fabricada e elaborada para se conservar.

Muito embora a dimensão principal da pobreza a ser conservada no sistema capitalista seja a pobreza relativa (a que denota a distância crescente entre ricos e pobres), não se pode negar o efeito colateral nas outras dimensões da pobreza. Em princípio, o combate à pobreza absoluta (isto é, a pobreza que só é medida em comparação com a dos próprios pobres) tem apoio de todos: do Estado e da sociedade civil, particularmente dos capitalistas, uma vez que os pobres também são vistos como uma fonte de consumo.

Um dos maiores exemplos de combate à pobreza, por essa dimensão, foi a proposta institucional, ocorrida na Europa e, em menor proporção, no Brasil, após a Segunda Guerra Mundial, cuja concepção era de um novo Estado que pudesse implementar e financiar programas e planos de ações destinados a promover os interesses sociais coletivos dos membros de uma sociedade  o Welfare State , que resultou em uma demanda ainda maior por serviços públicos e, consequentemente, um déficit público que culminou na crise do próprio Estado do bem-estar, pela qual a “pobreza foi apenas ‘repauperizada’ e reavivada sob o estigma da distinção entre pobre que merece e não merece” (DEMO, 2006, p.89).

As políticas assistencialistas de promoção da redução da pobreza definem um papel de extrema importância no primeiro momento, pois, quem se encontra no estágio de pobreza extrema  pauperismo – perde, além da cidadania, a noção de ser gente, por isso mesmo incapaz de assegurar por si mesmo os meios de sobrevivência. Todavia, políticas de redução da pobreza relativa promovem muito mais do que o amparo à sobrevivência, garantem o autossustento alicerçado na cidadania, na ética, na moral e na justiça social. No entanto, para o capitalismo é “[...] um dogma sagrado não mexer nos mais ricos [...]” (DEMO, 2006, p.82).

No Brasil, a pobreza tem sido mais acentuada do que em países com renda per capita similar, além de existir um grau de desigualdade social que é um dos maiores do mundo, denotando que as atuais políticas públicas de promoção ao bem-estar social se têm voltado apenas para pobreza absoluta (BARROS, 2000). A era Lula, sem dúvida alguma, tem sido uma das maiores promotoras ao combate dessa dimensão da pobreza. Mas, infelizmente, quanto ao combate à pobreza relativa, o governo Lula tem se mantido na mesma posição dos antigos governantes, ou seja, omisso, em total respeito ao dogma sagrado do capitalismo.

É verdade, que a pobreza, em qualquer que seja a sua dimensão, pode existir independentemente do capitalismo. Todavia, o inverso não é possível, ou seja, o capitalismo não sobrevive sem a pobreza. Muito pelo contrário, o capitalismo é a égide da pobreza, o seu guardião. Pela regra básica do valor capital, onde o lucro está acima de tudo, o capitalismo coisifica as pessoas e personifica as coisas (MARX, 2008). O homem é, assim, “coisa de menor valor” em busca das coisas de maior valor, onde a moeda de troca evidencia a mais-valia da oportunidade de poucos em detrimento da “oportunidade para todos”.

A oportunidade para todos é, sem dúvida alguma, a “menina dos olhos” do capitalismo. Uma falácia movida pela ganância de todos em prol da garantia da avareza de uns. É a ordem legítima do capitalismo, cujo lema “Todos por uns, e uns contra todos” se estabelece de forma inconsciente, para a maioria desprestigiada, a margem do poder político e econômico, e consciente para uma minoria, “os uns”, os capitalistas.

Os capitalistas, fruto da verdadeira oportunidade – a oportunidade de poucos – são atualmente oriundos do fluxo dos que já ricos permanecem ricos ou tornam-se, cada vez, mais ricos e do raríssimo afluxo dos que ascendem à riqueza. Independentemente da sua origem, capitalista é capitalista. “As riquezas não fazem distinção entre seus donos”.
O capitalista para manter-se como tal necessita da devoção pertinaz ao espírito do capitalismo. Dessa forma, o capitalista se desumaniza, passa a ser homem-coisa, predador feroz de todas as coisas do homem, arrebatador oportunista das riquezas alheias e explorador inexorável da mão-de-obra.

Por mais paradoxo que possa parecer é inegável que o espírito do capitalismo tenha sido, também, responsável pelo atual estágio de evolução da humanidade. Os investimentos feitos nas ciências e nas tecnologias têm possibilitado uma melhor condição de vida mediada pela cultura do consumismo, uma das maiores, senão a maior, fonte de acúmulo de riquezas.

A cultura do consumismo tem impulsionado a economia de tal modo que os produtos duráveis têm chegados precocemente ao fim na escala produtiva. É a obsolescência tecnológica a serviço da nova tecnologia e da razão de ser do capitalismo - o acúmulo de riquezas. A obsolescência não tem se limitado apenas a maioria das coisas produzidas pelo homem, tem chegado ao próprio homem.

A obsolescência humana, sem dúvida alguma, é a mais perversa das perversas ações promovida pelo espirito do capitalismo, torna “coisas de menor valor” em “coisa de nenhum valor”, condenando assim, a maioria dos desempregados, comerciantes falidos, entre outros, a serem “coisas” não aproveitáveis, descartáveis, verdadeiros refugos humanos. Destarte, quase todos os que servem aos capitalistas estão condenados a viverem dia a dia o medo de se tornarem refugos humanos, haja vista as atuais exigências de um mercado globalizado.

Não se pode negar que os custos sociais têm sido um preço muito alto, pago por uma grande maioria, para o triunfo do espírito do capitalismo. Doravante, para uma última análise, há de se perguntar: o espírito do capitalismo perdurará para sempre? A grande maioria, os explorados pelos capitalistas, estará disposta a manter o sacrifício em prol da imortalidade do espírito do capitalismo? Por outro lado, é possível a substituição do capitalismo, ou uma exorcização do seu espírito maléfico, para criar um novo sistema econômico e social cuja essência seja a descentralização do acúmulo de riquezas em benefício da “oportunidade de todos e para todos”?


Currículo
Doutor em Desenvolvimento Regional e Urbano e professor da Universidade Federal de Sergipe – UFS.


Atualizado em: Ter, 27 de setembro de 2011, 13:08
Notícias UFS