Saulo Henrique Souza Silva
24/03/2011
A Filosofia nunca esteve tão popular no Brasil. Em jornais e revistas, em livros de grande apelo editorial, em programas de televisão, é corriqueira a apresentação e a discussão de temas filosóficos destinados ao grande público pelos meios de comunicação. Essa abertura crescente acompanha o fortalecimento dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Filosofia nas universidades brasileiras e culmina com a recente inclusão da disciplina no currículo obrigatório do Ensino Médio com a lei nº 11.684 de 2 de junho de 2008. Entretanto, ao lado da popularização, a Filosofia continua motivando estranhamentos sobre sua especificidade e finalidade; tais dificuldades oriundas do público leigo não deixam de causar embaraços entre aqueles do métier.
Desde a sua origem, a tradição filosófica esteve orientada para o distanciamento da opinião vulgar. Estabelecendo para si um conhecimento de natureza rigorosa e exigente, os filósofos sempre primaram pelo uso de termos e conceitos cujos significados desprezavam a compreensão ordinária. Sobre isso, Platão, célebre filósofo grego, no diálogo A república, afirma pela boca de Sócrates que “é impossível que o povo seja filósofo” (PLATÃO, 2006, p. 238), da mesma forma que militava fortemente contra aqueles ditos mercenários do saber, os sofistas, que adequavam seus ensinamentos ao valor do pagamento e ao interesse dos auditórios, mas não à obtenção do puro e desinteressado conhecimento. Tal orientação faz com que a atual exploração comercial dos temas filosóficos tenha sempre um caráter duvidoso, sobretudo, porque a popularização da Filosofia não tem por finalidade desvelar o seu significado e nem a sua especificidade disciplinar visto que está atrelada às leis do mercado, como mais um produto entre tantos outros, e nesse contexto a seriedade da discussão quase sempre é comprometida.
De certa maneira, a antiga negação do senso comum e a atual popularização descomprometida de temas filosóficos têm condicionado a Filosofia a uma existência obscura às pessoas e o filósofo, muitas vezes, foi e continua sendo compreendido como um indivíduo excêntrico, defensor de ideias perigosas, sempre pronto a contestar a opinião corrente seja ela científica, política, religiosa, ou de outra ordem qualquer. A visão do filósofo como um indivíduo excêntrico e perigoso é tão recorrente que não são raros os momentos em que o público mais ignaro e incomodado condena: “os filósofos são todos ateus”. Essa compreensão tão corriqueira revela apenas o quão a Filosofia, mesmo com a crescente popularização, ainda causa estranhamento ao seu novo público quando informado da orientação amplamente aceita pelos filósofos de que a investigação filosófica nega (ao menos duvida) a explicação proveniente dos mitos religiosos para origem da natureza. Por isso, ao ser qualificado de ateu o filósofo é compreendido como um ser perigoso, no mínimo excêntrico.
Essa situação não deixa de influenciar a expectativa sobre a volta da Filosofia como disciplina obrigatória do Ensino Médio. Por um lado, os professores de outras disciplinas e os próprios estudantes não compreendem (ou compreendem muito mal) o que é a Filosofia e o porquê da sua obrigatoriedade entre as disciplinas ditas tradicionais. Por outro lado, a Filosofia ainda não se firmou no sistema educacional de muitos estados brasileiros pela dificuldade de conciliar o saber desinteressado proposto pelos filósofos com uma orientação educacional simplista, voltada para o automatismo histérico e inicialmente destinada à “preparação básica para o trabalho (...)” (LDB, 35, II). No meio desse contexto sombrio, o professor de Filosofia volta e meia é surpreendido com recursos de alunos “fundamentados” nessas supostas autoridades filosóficas estabelecidas pelo mercado editorial. É muito frequente, após algumas explicações, o aluno questionar: “professor, não foi isso que eu entendi quando li o Mundo de Sofia”, e o professor embaraçado responde: “mas, o Mundo de Sofia não é uma obra filosófica, mas sim um romance...”. Diante dessa resposta, o aluno, desconfiado de uma suposta arrogância professoral, contesta: “se é assim, qual a filosofia o senhor inventou?”, e, depois de alguns esclarecimentos, o aluno conclui: “professor, não adianta eu não consigo entender, filosofia é mesmo inútil e nem cai no vestibular”.
Frente a tantos dilemas vividos, seja por parte do professor que tem que enfrentar essas e outras questões embaraçosas, seja por parte dos ouvintes, muitas vezes, encabulados quanto à própria ignorância, a discussão mais séria do significado da Filosofia em um contexto social onde ela está cada vez mais presente se faz necessário. A popularização da Filosofia exige também a reflexão sobre qual é a tarefa e o lugar do filósofo em um país cada vez mais embevecido pelo capitalismo, sem uma sólida tradição filosófica e científica, cuja educação visa à reprodução tecnicista e o lucro, mas não o saber pelo saber. Sobre isso, veremos que a dificuldade reside no fato de que os próprios filósofos não compreendem seu métier de maneira unívoca, e as definições cambiam consideravelmente de acordo com a orientação ou a tradição à qual pertence o filósofo.
De um ponto de vista histórico, a Filosofia tem início na Grécia antiga por volta do século VI a.C.; possui, portanto, mais de 2.000 anos de história. No que diz respeito à etimologia da palavra, Filosofia corresponde à junção de duas palavras gregas: φιλία (philía) que designa amizade, amor, ou seja, laço afetivo e σοφία (sophía) que significa sabedoria, ou sapientia, como diriam os romanos. Além disso, o objeto da Filosofia é geral, por isso foi da Filosofia que se originaram as ciências específicas, naturais e humanas, como a física, a biologia, a astronomia, a química, a sociologia, a antropologia, a psicologia, entre outras. Como diria René Descartes, nos Princípios de Filosofia, a Filosofia é como uma árvore, cada parte dessa árvore corresponde a uma ciência específica; ciências essas que só se tornaram emancipadas a partir da Idade Moderna. Apenas por essa razão o conhecimento filosófico já deve ser compreendido como indispensável e fundamental na formação do estudante, seja ele do nível básico ou superior, por ser uma disciplina capaz de fornecer ao conhecimento fragmentado uma unidade transdisciplinar.
Por sua vez, a compreensão do que é a Filosofia é difícil haja vista que em cada período da sua história os filósofos divergem sobre como conceituá-la e sobre qual a especificidade do filosofar. Como diria o filósofo inglês David Hume, “ficaríamos felizes se pudéssemos unir as fronteiras das diferentes correntes de filosofia (...)” (HUME, 1996, p. 34). Assim, os filósofos constroem novos edifícios conceituais, operam demolições e apropriações, parciais ou totais, das estruturas filosóficas antecedentes, sem que haja necessariamente uma evolução cronológica ou mesmo lógica da Filosofia em geral. Por isso, o filósofo de vanguarda sempre objetiva dar novas explicações a determinados problemas, antigos ou recentes, construindo tais respostas sobre um alicerce de argumentos, do qual ele é o arquiteto e o engenheiro responsável. Seus subordinados são aqueles outros filósofos que seu discernimento concebe como necessários à verdade que florescerá apenas no pensamento maior representado por sua própria filosofia. Era assim, por exemplo, que Aristóteles no século IV a. C. entendia a sua filosofia como o momento ápice do desenvolvimento das questões iniciadas pelos fisiólogos dois séculos atrás, e o filósofo alemão G. W. F. Hegel compreendia a sua filosofia como “a autoconsciência da História universal” (HEGEL, 1999). Apesar disso, é lato senso entre os filósofos que um indivíduo é levado a filosofar pela curiosidade, algo que os gregos chamavam de thaumázein, não satisfeita com a resposta tradicional.
Por sua vez, todos que participam do discurso filosófico, que conhecem a história de seu desenvolvimento, devem atentar para a presença constante da relação entre mestre e discípulo na História da Filosofia. Desde o início, se sabe que Tales de Mileto foi o primeiro mestre grego cujo método de investigação influenciou outros filósofos, seus discípulos, que o sucedeu, os jônios. Isso não quer dizer, necessariamente, que o mestre deva ser entendido como um ente-físico presente, ao contrário, ele é o ente-teórico presente. Dessa forma, enquanto discurso que perguntava pelo princípio primordial do qual tudo tinha origem, os naturalistas sucessores de Tales sempre encontravam como resposta os elementos da natureza, da phýsis. Disso decorre também a influência de Parmênides, Heráclito e Pitágoras na filosofia platônica, bem como a importância da Academia de Platão para o florescimento de seu maior discípulo direto, em termos de grandiosidade filosófica, o estagirita Aristóteles. Esse aspecto denota que é imanente à Filosofia a relação mestre/discípulo e que muitas vezes os ensinamentos do mestre são pedras fundamentais para o desenvolvimento de um novo pensar, para o surgimento de uma nova explicação que sempre contesta ou se apropria da anterior, renovando-a. Como Karl Marx, por exemplo, mesmo sofrendo forte influência da filosofia de Hegel, não se contentou com as respostas do mestre e contrapondo-se a ele pensou a história não mais a partir do desenvolvimento do espírito universal, mais a partir de uma causa material.
Entrementes a essa explicação sumária, devem-se distinguir duas categorias de filósofos. Aquela dos indivíduos que se contentam em tentar entender o sentido dos ensinamentos dos grandes mestres da Filosofia. Eis a figura do intérprete cuja importância reside em facilitar o entendimento de uma obra particular ou do conjunto da obra de um determinado filósofo. Porém, essa é a categoria do aspirante a filósofo, não do filósofo propriamente dito. Filósofo, então, é aquele ente-intelectual cuja curiosidade crítica o leva a enxergar contradições e defeitos nas teses dos outros filósofos, refutando-as ou corrigindo-as, e impondo no desenrolar dos problemas e respostas um novo marco filosófico. É assim que contemporaneamente se convencionou denominar que temos um novo paradigma filosófico, esse paradigma, segundo Habermas, foi possível graças à virada linguística da Filosofia radicalizada por Wittgenstein (HABERMAS, 2004, p. 8).
Com efeito, contínua é a tarefa do filosofar, do discutir as teses e as hipóteses dos filósofos sobre as mais diversas questões. Porém, em uma situação de vulgarização filosófica e em um contexto de reinserção da disciplina no Currículo Escolar, a responsabilidade dos professores é grande e requer bastante cuidado, seja para firmá-la definitivamente no sistema educacional, após tanto tempo esquecida, seja para fazer com que esse maior acesso do aluno aos temas filosóficos não ocorra de maneira superficial e contrária à rigorosidade e à seriedade necessárias ao exercício honesto da Filosofia.
Publicado no Jornal da Cidade nas edições do dia 22 e 23/3.
Saulo Henrique Souza Silva, Professor da Cadeira de Filosofia do Colégio de Aplicação da UFS, Doutorando em Filosofia pela UFBA.