Afonso Nascimento
Ibarê Dantas é o fundador da Historiografia Política em Sergipe. Antes dele, alguns autores, sem formação de historiador, escreveram sobre a história política sergipana. Depois desse grupo inicial não científico, novo grupo, com e sem formação de historiador também tratou da política sergipana numa perspectiva histórica. Nesse grupo estão Maria Thétis Nunes, Ariosvaldo Figueiredo, Terezinha Oliva e outros. Mas é com Ibarê, discípulo, colega e contemporâneo dos nomes mencionados que a Historiografia Política é realmente construída, ganhando status de campo científico em Sergipe.
Munido da cultura historiográfica aprendida na UFS que sozinho aprofundou durante a sua graduação e ao longo de sua trajetória profissional, Ibarê se aproximou da Escola dos Anais que transformou a História num espaço científico através do emprego de métodos e de conceitos usados pelas Ciências Sociais, contra a velha tradição de narrar a história mediante a referência dos grandes homens e dos grandes eventos. A partir dessa bagagem intelectual, tornou-se um assíduo frequentador dos arquivos sergipanos e de outros estados, estabelecendo com eles uma familiaridade que alimentará o conjunto das pesquisas que desenvolverá ao longo de sua trajetória.
É justamente esse papel de fundador da Historiografia Sergipana que permitirá a Ibarê a contribuir para a formação política dos sergipanos. Explico-me melhor. Em toda a parte, no mundo moderno, os historiadores, ao recuperar e registrar a memória dos povos a que pertenciam, contribuíram para a formação das identidades nacionais, regionais, estaduais e locais. No caso de Sergipe, vale destacar, em primeiro lugar, o papel exercido por Felisbelo Freire ao escrever a primeira obra de história de Sergipe. Depois dele, outros autores ligados ou não ao IHGSE, também contribuíram para esse papel. Mas nenhum outro o fez com tamanha especialização e exclusividade como Ibarê.
Com efeito, toda a sua produção bibliográfica está centrada na história política sergipana relativa a todo o século XX. Dada a sua especialização, exclusividade e (acrescento eu aqui) extensão temáticas, Ibarê ensinou aos sergipanos quem são eles politicamente. As opiniões e as reflexões que têm os intelectuais, os políticos dados à leitura e demais setores interessados sobre a identidade sergipana passam pelas pesquisas e pelas interpretações de Ibarê. Não há como escapar. Além disso, como mencionei antes, contribuiu para estruturar a História como campo científico ao ajudar a constituir, também, a identidade de historiador em Sergipe.
Ibarê é também o fundador da Ciência Política sergipana. Antes dele, o nome pioneiro é sem dúvida o de Bonifácio Fortes, como ele próprio o observou em artigo. Bonifácio Fortes é um jurista polígrafo que escreveu, apoiado em fontes empíricas, trabalhos sobre eleições, partidos e elites políticas em Sergipe. Diferentemente de seu antecessor, Ibarê, com magistério específico (na graduação e na pós-graduação) e com mestrado em Ciência Política, foi muito além quantitativa e qualitativamente em termos de produção bibliográfica em relação ao seu predecessor. Dessa forma, contribuiu também para a constituição desse outro campo científico em Sergipe.
Afora o primeiro livro sobre o tenentismo, em que não parece fazer opção teórica, em todos os demais Ibarê diz compartilhar dos conceitos de política propostos por Gramsci, notadamente a sua teoria da hegemonia. Entendo, entretanto, que a sua definição gramsciana virá, de verdade, a partir do terceiro livro. O segundo tem, a meu ver, uma forte influência do marxismo estruturalista de Althusser e de Poulantzas – os quais se dizem, aliás, seguidores de Gramsci também. Ibarê seria, então, um cientista político marxista da política sergipana? Embora Gramsci se inscreva na tradição marxista, trata-se de um marxismo refinado, mais político, nada tendo a ver com as vertentes economicistas e autoritárias derivadas de Marx, Lênin e outros. Em relação a Ibarê, talvez seja mais adequado chamá-lo de um cientista político gramsciano da política sergipana, enfatizando a ação das classes e de suas frações, os seus interesses e a luta pela hegemonia política – embora, muitas vezes, tenha-se a impressão de que a força das fontes trabalhadas ( depoimentos pessoais, jornais, documentos oficiais etc. ) seja mais importante do que quaisquer sutilezas teóricas . Apesar de reivindicar uma objetividade impossível, é obrigatório notar que Ibarê é um pesquisador extremamente rigoroso, muito cuidadoso no manuseio de suas fontes e profundamente honesto intelectualmente.
Da leitura de seus oito livros, penso que dois pontos recorrentes podem ser destacados. Trata-se, em primeiro lugar, de sua crítica moderada mas firme das elites políticas sergipanas . À exceção talvez do seu primeiro livro (em que parece buscar o máximo de isenção no que escreve), sua obra está repleta de referências negativas às oligarquias, a sua falta de sentimento do bem comum, as suas práticas políticas não abonáveis, etc. O outro ponto que merece ser enfatizado é o seu papel de intelectual na construção da democracia em Sergipe. Produto de uma geração que viveu sob duas ditaduras (a de Vargas e a dos militares), de forma não radical ele militou contra a ditadura militar como estudante, como professor e como pesquisador. A sua compreensão da democracia parece ter sido derivada, primeiro, da própria obra de Gramsci e depois de autores como Norberto Bobbio, entre outros. Da leitura de sua obra, tem-se às vezes a impressão de que ele “torce” pelas forças políticas democráticas ou por mudanças que possam levar à introdução da gramática democrática na política sergipana. Esse duplo engajamento, no primeiro caso mais contido, enquanto que no segundo mais direto, faz dele um autor sempre atual. Ibarê Dantas é historiador e cientista político do século passado e, à exceção de um único livro, só sobre aquele século escreveu. Tem gozado de prestígio, de legitimidade de respeito dos seus pares acadêmicos, mas também fora da academia.
A opção de pesquisar e de escrever sobre Sergipe fez dele, necessariamente, um intelectual provinciano - sem sentido negativo. Caso tivesse escrito sobre São Paulo, por exemplo, seria um autor nacional, dadas a qualidade e a quantidade dos seus trabalhos. Em grande parte de sua obra, buscou relativizar objetos abordados pela historiografia paulista. Também por isso, ter Sergipe como objeto não o ajudou a tornar-se um autor nacional – a despeito da repercussão de alguns dos seus trabalhos. Não é um intelectual póstumo, mas sua obra ainda não foi suficientemente lida e trabalhada por seus conterrâneos. Ele abriu muitas pistas e muitas frentes de pesquisa que só serão trabalhadas pelas novas gerações de historiadores e de cientistas sociais. Isso faz de sua obra, a meu ver, uma passagem incontornável para quem queira conhecer a política no século passado, o que o torna um autor para o século XXI.
Professor do Departamento de Direito da UFS.