Viviane Fernandes dos Santos
A partir de um estudo etnográfico realizado com renais crônicos e transplantados em uma clínica de hemodiálise em Aracaju, foi elaborada dissertação de mestrado focalizando as experiências particulares e coletivas dos sujeitos no cotidiano da clínica, a partir de uma abordagem antropológica. Os aspectos subjetivos presentes nas relações estabelecidas durante o tratamento e as expectativas em relação à possibilidade de transplantes foram analisados tomando como pano de fundo dessa discussão o quadro atual de doações e transplantes em Sergipe.
A pesquisa revelou que a percepção do fato de ser renal crônico e estar em hemodiálise pode ser desvinculada do entendimento de tal contexto como “tragédia pessoal”, podendo ser compreendida enquanto estilo de vida. A relação de dependência para com a máquina que substitui as funções do órgão ineficiente, os impositivos do tratamento, as restrições alimentares, a fístula arteriovenosa que permite uma melhor qualidade para o usuário na conexão do seu corpo com a máquina, a expectativa do transplante entre outros fatores compõe a experiência do renal crônico e faz parte do seu cotidiano. Outras pessoas já nasceram portadoras de deficiências e/ou doenças crônicas ou desde criança também experienciam rotinas específicas e necessidades de intervenções biomédicas que caracterizam um peculiar estilo de vida.
A corporeidade[1] promove a perspectiva analítica e prática do “eu posso”. Mesmo acontecendo em níveis diferenciados, enquanto deficiência e limitações apresentadas, é imprescindível para uma maior qualidade de vida, que o renal foque o que pode, o que é permitido, o que faz bem, aliando a perspectiva das possibilidades e suas características individuais ao contexto biomédico do tratamento. O cansaço em relação ao tratamento e sua rotina aumenta a expectativa do transplante que por sua vez nem sempre é alimentada. O baixo número de doações a partir de doador cadáver, inexistência de doador vivo compatível ou disponível entre os familiares, problemas pós-transplantes que podem conduzir o usuário de volta á máquina, arrefecem em alguns o sonho do transplante.
Infelizmente a doação de órgãos, transplantes e condições apropriadas para quem depende do sistema de saúde público para tomar medicamentos, fazer tratamento e exames periódicos, não são focos da nossa Secretaria Estadual de Saúde, dados os planos de ação, prioridades estabelecidas e relatos das pessoas em tratamento entrevistadas. Profissionais de saúde também apontaram nas entrevistas essa percepção.
Clínicas que realizem o tratamento hemodialítico em cidades estratégicas do interior, poderiam promover melhor qualidade de vida de muitos usuários que precisam deslocar-se para Aracaju três vezes por semana e ficar conectados à máquina por aproximadamente quatro horas e tendo que retornar a sua cidade após o procedimento. Por falta de transporte disponível, por vezes usuários ficam o dia inteiro na clínica.
Foi possível perceber também que empenhos maiores podem ser realizados para aproximar a temática da população e dos profissionais de saúde, como: mais campanhas educativas, inclusão em currículos educacionais nas disciplinas de ciências e biologia no ensino fundamental, e disciplina específica ou conteúdo trabalhado de forma sistemática no ensino superior – segundo enfermeiros e médicos entrevistados doação e transplantes são conteúdos apresentados como apêndice de uma aula. Cursos de medicina precisam e podem ensinar a fazer o diagnóstico de m.e. na prática, formando médicos seguros em realizá-lo. Um diagnóstico definido a partir de exames reconhecidos como extremamente simples e que, por outro lado, tantos não se sentem à vontade ao fazê-lo, ou simplesmente não querem por descompromisso com a causa, sobrecarga, justificando por vezes que é melhor dar atenção aos pacientes vivos que os aguardam.
O número de doações e transplantes em Sergipe é muito baixo, conseguindo regredir em número de transplantes efetivados em descompasso com as estatísticas crescentes do país. Embora os esforços da Central de Transplantes de Sergipe junto à SES e disponibilidade para comunicar sobre o tema, o problema é de grandes proporções e não estaria de um todo resolvido se o número de doações fossem suficientes. A pesquisa sinalizou que o grande problema está em aspectos básicos, assim como em outros grandes problemas da nossa sociedade. Estes aspectos são de ordem social e também cultural, como as formas de alimentação e estilos de vida. Se a saúde básica fosse eficiente, mais precocemente certos problemas poderiam ser identificados, necessitando-se de menos intervenções de grande porte como hemodiálise e transplantes. Mas, doenças do tipo geralmente “silenciosas” como a hipertensão e a diabetes são aquelas que seriam mais facilmente identificadas pelo acompanhamento médico periódico e que, também, mais condizem com a necessidade de intervenções - como medicamentos de uso contínuo, cirurgias etc.
Registrei a contribuição de um querido colega de turma da graduação, Rogério Esteves, ex-professor substituto da UFS, funcionário da OAB/SE que elevou nossas estatísticas em doação e transplantes em 2011, ao ter informado sua família sobre sua vontade de ser um doador de múltiplos órgãos se algum dia estivesse em situação de morte encefálica. Rogério faleceu em 14 de dezembro após um atropelamento enquanto pedalava, ele era ciclista profissional. As córneas e os rins tiveram a doação efetivada; em relação ao coração isso não foi possível devido à indisponibilidade de transporte aéreo em tempo hábil.
Também foi registrado o ápice da satisfação do transplantado após o procedimento cirúrgico de recebimento do novo rim; este ápice é outro ponto da complementariedade entre natureza e cultura identificada no trabalho. Ele foi uma consideração unânime dada pelos transplantados ao verbalizarem sobre a melhor experiência após o recebimento do novo rim: “fazer xixi como todo mundo ou como faziam antes de ter o problema renal!”
As pesquisas antropológicas têm contribuído para a compreensão das relações entre saúde, doença e cultura, destacando metodológica e teoricamente a importância dos saberes familiares, a relativização das práticas e ausculta de como as pessoas percebem as orientações que recebem ou são impostas pela biomedicina.
[1] Para Merleau-Ponty (1994) esta perspectiva permite um movimento do que antes era caracterizado pelo “eu penso” no processo que cinde corpo e pensamento, para “eu posso” na fusão deles, característica da corporeidade.