Um incêndio na Ala Covid da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Doutor Nestor Piva, na Zona Norte de Aracaju, no dia 28 de maio, resultou em pelo menos cinco mortes. A notícia, embora absolutamente trágica, não é isolada. Em todo o país, incêndios e princípios de incêndios acontecem em unidades de saúde de portes e complexidades diversos. O assunto é o tema da pesquisa “Análise da percepção dos profissionais de saúde acerca da segurança contra incêndio nos estabelecimentos de assistência à saúde como um fator de qualidade do cuidado e de assistência do paciente”, dos pesquisadores Ana Carla Ferreira, Hertaline Rocha (docentes do Departamento de Enfermagem do campus Lagarto), Antunes Brito e Rafael Bitencourt. Nesta entrevista, a professora Ana Carla destaca que o treinamento adequado de profissionais de saúde para essas situações é fundamental por três motivos: 1- eles estão sempre próximos aos pacientes e, portanto, podem oferecer uma resposta com a velocidade que a situação exige; 2- são os mais capacitados a entender o estado de saúde do paciente, suas necessidades e o manuseio adequado de equipamentos utilizados no tratamento; 3- se treinados adequadamente, não tomariam decisões no auge da emoção, pois estariam seguindo um protocolo previamente estabelecido, o que garante segurança para pacientes e equipe.
Você estava me falando que esse trabalho faz parte de uma linha de pesquisa... Um grupo de estudos. Nós temos um grupo de estudo aqui no Departamento de Enfermagem de Lagarto que se chama Gesp, que é Grupo de Estudo de Segurança do Paciente. A gente trabalha dentro desse grupo de estudo a questão de riscos clínicos para o paciente e os riscos clínicos não assistenciais. O que acontece? Todas as vezes que a gente trabalha principalmente com a segurança do paciente, a gente tem a questão do programa nacional de segurança do paciente, nós temos uma política pública relacionada a isso… A gente sempre pensa naqueles riscos clínicos assistenciais, que pode causar algum dano ao paciente. Então, o próprio profissional de saúde causar algum dano. Mas muitas vezes a gente subdimensiona a questão dos riscos clínicos não assistenciais e aí entra a questão da importância dos profissionais de saúde serem treinados, aptos, a questão das situações de emergências relacionadas à segurança contra incêndio e pânico. Porque quando a gente pensa no paciente como um todo, Laura, pra você ter uma ideia, a maioria das vezes quando a gente tá num estabelecimento de assistência à saúde, a gente tem que prever e prover a segurança desse paciente. E o que é que acontece? Numa situação de incêndio, por exemplo, a maioria desses pacientes estão em alta dependência, fragilizados, com dificuldade de locomoção, e as pessoas mais aptas a intervir naquele primeiro momento, antes mesmo dos bombeiros chegarem, são os profissionais de saúde que vão estar fazendo, da maneira correta, a retirada desses pacientes desses locais. Claro que preservando a questão da sua integridade física, da sua vida, mas é uma coisa que a gente trabalha muito, a corresponsabilidade dos profissionais de saúde na questão da segurança do paciente e relacionado principalmente a questão de incêndio e pânico no estabelecimento de assistência à saúde, né? Nos hospitais, no caso.
No trabalho publicado, você fala que muitas unidades de saúde ainda se recusam, hoje em dia mesmo, a ter um plano de contingenciamento, sobre incêndio e sobre algumas outras ocorrências. Por que você acha que ainda existe hoje em dia esse tipo de resistência? Porque assim, Laura, existe ainda a questão da resistência por parte dos hospitais na criação desses planos de contingência, que são planos que a gente tem o intuito de fazer o quê? De diminuir essas situações de risco, não só de incêndio e pânico, mas de uma forma geral. Porque quando você pensa num plano de contingência, você tem que mobilizar todo o hospital, todos os profissionais, todas as hierarquias. Então é algo que é uma construção coletiva, não é uma construção apenas do setor de segurança do paciente, por exemplo. Então, fazer essa mobilização é muito importante, porque o que é que acontece: num plano de contingência, a gente tá querendo treinar aquele profissional de saúde, as pessoas que estão principalmente envolvidas com a questão da assistência direta ao paciente. Aí ele tem a questão do quê? De prever a questão, reagir e agir numa situação de emergência. Porque o que é que acontece? Se esses profissionais de saúde, se essas pessoas que têm a questão da assistência direta ao paciente, não são treinadas no intuito de realizar esses cuidados num momento de estresse máximo, que é num momento de incêndio, no momento que isto realmente estiver acontecendo de verdade, ela não vai conseguir desempenhar um bom trabalho e conseguir tirar essas vítimas com êxito, porque ela ou se desesperar ou ela vai se paralisar. Então o treinamento, a criação de brigadas de incêndio dentro dos hospitais e que esses brigadistas, profissionais de saúde, façam parte da brigada de incêndio, é salutar para que a gente consiga diminuir drasticamente o índice de mortalidade dos momentos desse evento, que ocorrem nesses momentos de estresse. Nós tivemos aqui em Aracaju na semana passada, infelizmente, a questão do incêndio na UPA, no Hospital Doutor Nestor Piva, e a gente viu o quanto é chocante as imagens relacionadas de um momento de estresse. Então, foi veiculado em todas as mídias, as mídias televisivas mostraram em tempo real o que estava acontecendo naquele momento e eu acho que todo mundo pode perceber o desespero e a desorganização que muitas vezes podem acontecer num momento de incêndio. O treinamento, a questão da inserção de brigadas, isso é importante para que nesses momentos, quando ocorrer, a gente saiba como conduzir essa situação com maior efetividade e que a gente salvaguarde tanto a vida dos pacientes quanto a vida das pessoas que estão envolvidas no cuidado ao paciente, na assistência direta ao paciente.
E você diria que a maioria dos profissionais de saúde, hoje em dia, têm essa qualificação, esse treinamento específico pra isso, ou provavelmente em várias unidades de saúde ocorreria o que ocorreu na Doutor Piva, no sentido das pessoas estarem procurando ainda como fazer e como reagir? Laura, eu acho assim: hoje, a gente vê que a questão da cultura de segurança ao paciente, principalmente depois que o próprio Ministério da Saúde tem a questão da instauração do Plano Nacional de Segurança do paciente, essa é uma conversa que tá muito mais aberta e a gente tá criando muito mais espaços dentro dos hospitais. Eu acho que a gente vem evoluindo muito no sentido dessas conversas, desses estudos, do aprofundamento dessa necessidade de discutir. A maioria dos hospitais, principalmente os hospitais de grande porte, hoje, possuem setores relacionados à segurança do paciente, instalação de brigadas de incêndio voltadas para esse público. Eu acho que é uma tendência de cada vez a gente melhorar. Mas o que eu percebo não é nem só a questão de melhorar essas discussões, mas de, realmente, isso fazer parte dos processos de trabalho das pessoas que trabalham em hospitais, em UPAs, em unidades básicas de saúde. É necessário essa cultura relacionado à questão dos riscos clínicos não assistenciais, mudanças de paradigmas relacionadas a esse olhar. Tem que ser uma coisa cotidiana, porque o que é acontece? Em muitos locais e muitos países, e até mesmo no Brasil, a realidade que a gente tem é que os próprios profissionais de saúde já são brigadistas obrigatórios dentro dos estabelecimentos de assistência à saúde. Mas em alguns locais, isso não acontece. Não existe nem essa obrigatoriedade, nem os treinamentos efetivos. Mas eu acho que a gente vem avançando no sentido de melhoria desses processos de trabalho relacionados a essa temática do sistema de combate a incêndio e pânico dentro dos estabelecimentos de assistência à saúde. E o nosso intuito é muito mais fazer ver essa percepção, a gente traz esse olhar… Eu como profissional de saúde, eu como enfermeira, minha formação basilar, eu sou enfermeira, sou professora do departamento de enfermagem daqui, mas que a gente consiga ter essa mudança até trazendo essa discussão para a graduação, para que os alunos consigam mudar esse olhar e já se sentirem copartícipes desse processo.
E enfermagem é uma profissão, que tem várias áreas de atuação, né? Uma delas é inclusive ligada a questões de gestão. De que forma você acha que a gestão na enfermagem pode contribuir com essa prevenção? Dentre as categorias profissionais que nós temos de saúde, dentro do hospital, o enfermeiro é aquele profissional que a gente fala que permanece 24 horas com o paciente. Aos cuidados dos pacientes, a gente tem a questão dos enfermeiros. E a gestão, a questão é salutar, principalmente na questão de criação de núcleos de segurança do paciente dentro das instituições hospitalares, isso é muito importante. Fomentar essa discussão entre os profissionais, com as capacitações, os treinamentos pertinentes relacionados a isso. Se estabelecer a questão do plano de contingência, como você falou no início: é importante se ter um plano de contingência hospitalar voltado para essa necessidade de combate a incêndio e pânico. Eu falo isso porque a gente poder planos de contingência diversos, mas a gente vê muito a questão ainda de ser ínfimo a criação desses protocolos dentro dessas instituições. Quando você falou em gestão, a gente percebe uma mudança muito grande porque, por exemplo, em hospitais que passam por acreditações tanto nacionais como internacionais, são necessários a questão desses itens, principalmente o plano de contingência, senão a gente não recebe esse selo de qualidade de assistência. E quando a gente tá falando de segurança do paciente, a gente tá falando da própria segurança do paciente e mostrando que a gente tá ministrando uma assistência de qualidade a esses pacientes, a esses clientes que fazem parte desse escopo dos hospitais. Então a gestão é salutar, nesse momento, atrelando todos os protocolos necessários para que a gente possa desenvolver uma assistência segura a todos que precisam de uma assistência hospitalar.
A sua pesquisa é muito centrada na assistência ao paciente. Mas no caso dessas questões de incêndio e pânico, um treinamento adequado também não poderia ser uma garantia de segurança para a equipe multidisciplinar de saúde que tá dentro daquela unidade de saúde? Eu puxo muito a minha pesquisa para a parte de uma percepção dos profissionais que estão dentro dessas instituições. Já existe a questão dos treinamentos próprios para a questão de brigada de incêndio, a constituição, que é uma parte técnica relacionada a isso. Mas o problema que eu percebi é que muitas vezes não tanto há um envolvimento dos profissionais de saúde, no sentido de fazerem parte desses espaços, ocuparem esses espaços. Não é nem só a questão de ocupar o espaço, tem a questão da responsabilidade relacionada a esses exemplos. Mas assim, todos os hospitais possuem a questão da segurança do trabalho, trabalha muito com essas questões de prevenção, mas o que eu vejo é a questão também da mudança de paradigma dessa cultura de segurança do paciente, principalmente entre os profissionais. Pra você ter uma ideia de como esse assunto me chamou a atenção, na minha graduação – e olhe que minha graduação já fiz há um tempinho – não foi abordado na minha graduação a questão da responsabilidade da gente numa questão de riscos clínicos não assistenciais, por exemplo no caso de um incêndio. Então muitas vezes a gente pensa o quê? Na hora que tem um incêndio, dentro de um hospital, a primeira tomada de decisão a gente vai querer o quê? Ou chamar a brigada de incêndio, que muitas vezes são constituídas por pessoas que não são da área da saúde, ou ligar para os bombeiros. Mas a gente lembra que um incêndio é muito rápido. Às vezes a questão de uma fração de segundo, todo o ambiente já tá tomado por chamas, por fumaça, e a pessoa que consegue dar uma retirada segura no sentido… Por exemplo, uma pessoa que tá na UTI, de alta dependência, em uso de vários parâmetros, necessita de uma pessoa que saiba manusear aqueles aparelhos pra retirar ele dali. É como eu disse no início, isso salvaguardando a vida dos profissionais, o treinamento adequado para que ele saiba reagir e agir numa situação extrema de risco, não colocando sua vida em risco e tentando salvar ao máximo salvar o máximo de pessoas possíveis nesse momento de incêndio, que é um momento de muito estresse.
Foi exatamente o caso do que aconteceu lá no Nestor Piva. Porque além de tudo, aconteceu num momento muito crítico da saúde pública, ainda por ser numa ala ligada à Covid-19. Além de tudo, isso exigiu dos profissionais de saúde um treinamento e uma reação em relação à própria questão do estado de saúde dos pacientes, não é isso? Verdade. Ali, eram pacientes… Foi percebido nas imagens que foram transmitidas, pacientes com uso de oxigenoterapia, então havia necessidade de cuidados complexos no momento dessa retirada. Percebemos também alguns profissionais de saúde no intuito de salvar a vida dos pacientes também passaram mal, a gente pode perceber. Então assim, saber agir nesse momento, como você falou, a questão dos treinamentos adequados, de todo o parâmetro necessário para que a gente consiga salvar o maior número de vidas possíveis é o que a gente mais tem que prezar num momento desses riscos clínicos não assistenciais, que muitas vezes, são subnotificados. É como eu disse pra você, Laura, a gente tá falando de um hospital aqui pro estado de Sergipe é um hospital de referência, e isso acontece todos os dias no Brasil, em vários hospitais, e não chegam a ser noticiados. Muitas vezes o que é noticiado é aquilo que já virou uma tragédia, que a gente vê que já passou desses momentos. Mas são vários focos de incêndio, a gente não tem um banco de dados no Brasil que a gente consiga mensurar a quantidade de incêndios em estabelecimentos assistenciais à saúde durante um ano, a gente não tem esse banco de dados fidedignos, então é tudo muito subnotificado. Do ano passado pra cá, a gente teve o hospital de Bom Sucesso, que foi um hospital universitário no Rio de Janeiro, vários outros… Se você fizer uma pesquisa rápida no Google sobre incêndios no Brasil, você vai perceber que é uma constante, mas é um tema que ainda é muito subnotificado. Porque muitas vezes acontece aquele incêndio dentro do hospital que é apagado por pessoas locais, aquela coisa toda, e a gente não tem esses dados de notificação, a gente não tem um banco de dados que mostre, mensure, a quantidade de incêndios que a gente tem realmente ao ano no Brasil. São subnotificados. Os que aparecem são aqueles casos realmente que já são casos de mídia.
Inclusive no dia seguinte ao incêndio lá do Nestor Piva, teve um caso lá em Balneário Camboriú, em Santa Catarina, numa ala pediátrica. Foi um princípio de incêndio, eles contiveram rapidamente, mas, ainda assim, ocorreu. Então, realmente, como você disse, é uma constante. E o que é que tem que ser feito, qual a sensibilização que os governos, as unidades de saúde, os profissionais têm que fazer para que isso deixe de ser uma constante na realidade das unidades de saúde? Continuar implementando a questão dos treinamentos voltados para essa questão de segurança do paciente, principalmente risco clínico não assistencial de incêndio e pânico, relacionados a ele… A criação dos planos de contingência pelos hospitais, pela gestão, como você falou. É importante que tenha essa articulação no sentido que esse planos de contingência sejam executados, que sejam realizados, e que tenham executabilidade no momento da sua realização. Porque quando a gente tem um plano de contingência, qual é o intuito desse plano de contingência? É orientar esses profissionais de assistência direta ao paciente e de brigada de incêndio na questão de como proceder no momento que esse evento ocorra e que a gente consiga ter uma celeridade. Na verdade, a gente não pensa nem que o evento ocorra. Quando a gente fala de incêndio e pânico, a gente tem que trabalhar com a palavra-chave que é prevenção. Então, o plano de contingência vem resgatar essa questão da prevenção desses eventos, para que esses eventos ocorram.
Até porque se não ocorrem, você tem menos riscos para a equipe e para os pacientes também. Com certeza. E quanto mais você é treinado, quanto mais você tem os protocolos, quanto mais você tem um plano de contingência, que você já vem sendo treinado como agir numa situação dessas, no momento que isso realmente ocorrer, você não vai entrar em desespero, você não vai se deixar paralisar pelo medo, você não vai entrar em desespero. Você vai conseguir agir com maior efetividade. Porque quando a gente tá sob estresse emocional, se a gente não tem um treinamento, sob forte emoção, a gente não consegue muito desenvolver as atividades. Mas se você tem um treinamento, você vem sendo treinado constantemente para aquilo, no momento que esse evento possa ocorrer, você vai estar dando os primeiros atendimentos às pessoas que necessitam.
Ana Carla, tem alguma coisa que eu não te perguntei que você gostaria de acrescentar sobre seu trabalho, sobre esse assunto… Fique à vontade. Olhe, Laura, uma das coisas que eu queria acrescentar é a necessidade dessa discussão começar já na academia, na formação dos profissionais, eu acho que isso é importante. Foi por isso que eu abracei essa causa, no sentido de os alunos, de os futuros profissionais de saúde, quando forem profissionais, que entrarem num hospital, entrarem nos seus postos de trabalho, já perceber que eles também são copartícipes na questão de dirimir os riscos clínicos não assistenciais – nesse caso, da questão do incêndio e pânico. Então, é muito necessário que essas discussões comecem na academia. E eu acho muito importante porque o próprio departamento de enfermagem daqui de Lagarto, nós temos uma disciplina de segurança do paciente, dentre essa disciplina que foi feita, acontece a questão dos riscos clínicos não assistenciais e a gente aborda a questão de segurança de incêndio e pânico. Então os alunos de enfermagem do campus de Lagarto eles já tem um olhar diferenciado para essas questões. Eles já começam a saber que faz parte também da sua formação profissional, e vão levar pra si a questão de olhar para o paciente também com esse olhar. Porque muitas vezes a gente pensa só nos riscos clínicos. O que é o risco clínico? É aquele dano que você pode causar ao paciente diretamente na sua assistência. Um exemplo muito básico, por exemplo, erro de medicação… Diminuir esses eventos ao paciente. Mas a questão do incêndio não é trabalhada. Não foi trabalhada na minha graduação e por isso senti a necessidade de começar essa discussão na academia, com os alunos ainda em formação.
Ana Laura Farias - campus de Lagarto
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