A mandioca é responsável por dar origem a diversos pratos típicos da culinária brasileira, principalmente nas regiões Nordeste e Norte. Alguns dos maiores vilões naturais da planta são os ácaros verde e rajado - o primeiro é exclusivo da mandioca, já o segundo ataca outros cultivos. Essas pragas, quase invisíveis a olho nu, danificam as folhas e podem até matar a planta.
Uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Sergipe (UFS) analisa mecanismos de defesa da planta da mandioca contra esses ácaros. O estudo é encampado pela professora Bianca Giuliano Ambrogi, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação (PPEC), e sua aluna de doutorado Ranna Heidy Santos Bezerra, envolvendo também os alunos da graduação em Ecologia Ítalo de Jesus Aragão e Olin Gabriel Nascimento (confira nossa conversa com Bianca e Ranna no final desta reportagem).
Bianca explica que as espécies de plantas e animais se comunicam através da ecologia química. “O exemplo mais conhecido da ecologia química é a questão dos feromônios sexuais, o fato de uma fêmea emitir um odor que atrai um macho para o acasalamento”, ilustra. No caso das plantas, a ecologia química é um importante recurso para ser usado como mecanismo de defesa.
“Elas não podem ‘correr’ para se defender”, pontua a docente. Elas “têm alguns mecanismos que são bastante visíveis, como os espinhos, a presença de serosidade, látex, substâncias tóxicas…”, descreve. A ecologia química seria usada, então, como outra modalidade de defesa para as plantas, menos visíveis. “É a questão dos voláteis de defesa: compostos orgânicos, substâncias químicas, que as plantas liberam quando são atacadas”, diz Bianca.
A mandioca contra os ácaros
Os compostos voláteis produzidos pela planta podem agir de duas formas: repelindo o “vilão”, ou seja, o ácaro herbívoro; e atraindo inimigos naturais dessa ameaça. No caso da mandioca, o inimigo dos ácaros herbívoros é outra espécie de ácaro. “São os predadores, os parasitoides. Eles vêm até a planta e parasitam ou predam esse herbívoro que tá atacando a planta”, explica Bianca.
O estudo começou com a pesquisa de mestrado de Ranna Bezerra. “Nós observamos que a planta de mandioca, quando é atacada por esses herbívoros, ela produz diferentes misturas de compostos voláteis que vão diferir tanto daqueles compostos que são emitidos pelas plantas sadias, quanto entre si”, conta Ranna. “E o que a gente buscou foi verificar se esses compostos podem ser atrativos ou não para essa espécie de inimigo natural, o ácaro predador”, relata a pesquisadora, destacando que a hipótese foi confirmada: “Observamos que as plantas emitem compostos diferentes quando atacadas e esses compostos são, sim, atrativos para o inimigo natural”.
Ranna seguiu então para o doutorado em Ecologia e Conservação, ainda sob orientação de Bianca, e avançaram no estudo sobre os mecanismos de defesa indireta da planta da mandioca. Elas têm observado que as plantas, quando atacadas, produzem uma maior quantidade de néctar extrafloral do que as plantas sadias.
“A gente está muito acostumado com néctar floral, que é o néctar que atrai os polinizadores - as abelhas, borboletas -, mas algumas plantas produzem esse néctar extrafloral, que é a produção de néctar, mesma substância açucarada, semelhante ao néctar floral, mas [que] é produzido por outras estruturas da planta”, explica Bianca.
“Os trabalhos têm mostrado que quando a gente induz, há um aumento dessa produção do néctar extrafloral, e isso então faz com que esses inimigos naturais sejam atraídos, permaneçam na planta, [...] repelindo esse herbívoro ou até eliminando ele realmente da planta”, conta a professora.
“Nesse momento, estamos induzindo a planta de mandioca a produzir néctar extrafloral de diferentes maneiras: tanto pelo dano mecânico, que seria pelo corte das folhas, quanto pela herbivoria do ácaro verde”, descreve Ranna. A herbivoria se dá através da inserção do ácaro, de forma controlada, na planta. “E após isso queremos também fazer análises químicas para verificar a composição desse néctar, se também vai diferir entre a planta sadia e a planta danificada”, pontua a doutoranda.
A pesquisadora ressalta que não há muitos estudos sobre as defesas da planta da mandioca às pragas. “Apesar de a mandioca ser extremamente importante, têm muito poucos trabalhos relacionados a ela”, aponta Ranna. “Têm alguns poucos trabalhos que verificam, por exemplo, a indução de voláteis, mas no caso de resposta de herbívoros, [...] realmente não é estudada, e a resposta de predadores ainda está em fase inicial. Quanto ao néctar extrafloral, existem estudos muito antigos verificando principalmente que existe a produção, mas fora isso a gente não tem muita coisa a respeito da função desse néctar”, observa.
O futuro da mandioca
Apesar da importância da mandioca para a culinária, economia e cultura do Brasil, sua produção não vai muito bem. Mesmo sendo ainda um dos maiores produtores mundiais, o país tem visto o resultado desse cultivo cair ao longo dos anos. É o que mostra a Análise Conjuntural da Cultura da Mandioca, realizada e publicada pelo governo de Sergipe. “Entre os anos de 2009 a 2018, a redução da área colhida foi de 31,5 %, enquanto que a produção sofreu queda de 27,7 %”, aponta o relatório.
No caso de Sergipe, a situação é ainda mais preocupante, pois “em termos de produção, sofreu redução de 63,1%”, segundo o mesmo documento. É um índice impactante, apesar do destacado rendimento médio do estado, de 55,3 % acima do rendimento médio do Nordeste.
Sergipe é o quarto maior produtor do Nordeste, ficando atrás da Bahia, Maranhão e Ceará - todos, estados com dimensão territorial bem maior. Em números, a mandioca não tem tanto destaque na agricultura sergipana, perdendo em área de plantio e em quantidade produzida para o milho, a cana-de-açúcar, a laranja e o coco-da-baía, segundo o relatório Perfil da Agricultura Sergipana, de 2019.
As pragas são um inimigo a ser combatido, mas são apenas uma pequena parte dos desafios a serem enfrentados. Para os pesquisadores autores deste artigo, o avanço da monocultura do milho transgênico em Sergipe contribui para o enfraquecimento do tradicional “trinômio da agricultura familiar”, a partir da cultura consorciada da mandioca, feijão e milho. As estiagens e uso de agrotóxicos também são apontados por eles como prejudiciais para a lavoura da mandioca e outros alimentos em propriedades familiares.
Ainda assim, o povo sergipano tem muitos motivos para “saudar a mandioca”, pois ela tem forte presença na cultura do estado: da produção de farinha realizada há gerações nos municípios da Rota da Farinha à tradicional Maniçoba, icônico prato da culinária de Lagarto - maior produtor de mandioca do estado - feito a partir da folha da planta.
Segundo Bianca Ambrogi, a aplicação do conhecimento resultante da pesquisa é bastante ampla: pode ir da produção de compostos orgânicos voláteis sintéticos para aplicação na agricultura, até a área da biotecnologia e do melhoramento genético. A raiz indígena, pré-colombiana, espera por mais esse aliado em sua resistência histórica.
Marcilio Costa
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Defesa ‘natural’ da planta da mandioca pode ser trunfo contra pragas