Antes da facilidade das tecnologias, a fotografia era um artigo de luxo. Para ter um registro, ou ia para um estúdio ou procurava uma tenda de foto lambe-lambe. Como custava uma “nota”, a população mais pobre recorria aos serviços dos fotógrafos lambe-lambes. A procura, na maioria das vezes, não era para guardar em álbum ou colocar em quadro. Tinha outra utilidade: usar nos documentos. E vantagem: revelação instantânea.
A história desses profissionais, que tornaram a fotografia acessível à maior parte da população, fascinou Cândida Santos de Oliveira na graduação em Jornalismo, em 2005, em uma universidade privada de Sergipe. A ideia dela era transformar no Trabalho de Conclusão de Curso, mas não deu certo: faltava tempo. “Guardei o sonho e o reavivei na graduação em história na Universidade Federal de Sergipe”, disse.
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Na segunda graduação, ela escreveu um artigo sobre registro lambe-lambe, sob orientação do professor Claudefranklin Monteiro, do Departamento de História. Ali, ela percebeu que o assunto “tinha pano para manga”. E tinha, não à toa a dissertação dela no mestrado em História da UFS abordou: “Lentes, memórias e história: os fotógrafos lambe-lambes em Aracaju 1950-1990”. A defesa ocorreu no ano passado.
Nesse trabalho, também orientado por Monteiro, Cândida mostrou a importância social dos fotógrafos lambe-lambes na história da capital sergipana e a marginalização da atividade em um cenário de tensão com o poder público. Ela ainda abordou os efeitos da evolução tecnológica, que culminaram no declínio da foto lambe-lambe, e a adequação dos profissionais aos novos tempos da fotografia em meio a condições precárias, como falta de espaço adequado.
Para contar a história, ela realizou entrevistas com pessoas ligadas à temática, como fotógrafos e memorialistas. Consultou também materiais acadêmicos, livros, revistas e imagens.
Longe dos ateliês também se retrata
Os registros dos primeiros fotógrafos em Aracaju apareceram 18 anos depois da fundação, em 1873. Na época, os fotógrafos vinham de temporada para a recém-capital do estado. E anunciavam a passagem nos jornais:
Em Aracaju, os fotógrafos lambe-lambes surgiram na década de 1930. Antes deles, segundo a pesquisa, “já existia a fotografia para as famílias mais abastadas, que tinham condições de pagar por fotos realizadas em estúdios”.
“Para além das fotos dos estúdios, as imagens produzidas pelas máquinas lambe-lambes ganham importância e relevância social na medida em que muitas vezes o seu ofício era o único meio que permitia o acesso para a população de menor poder aquisitivo, que precisava de fotos para fins práticos, como documentos, registrar o local que visitou e o envio da fotografia para parentes e amigos”, escreveu a pesquisadora.
Inicialmente, eles se concentraram na avenida Coelho e Campos, na antiga Viação Férrea Leste Brasileiro. Com a inauguração da nova estação no bairro Aribé, hoje, Siqueira Campos, em 1950, eles foram transferidos para a praça General Valadão.
Segundo o trabalho, como forma de garantir espaço físico e comercial, os fotógrafos montaram tendas com “equipamento básico - câmera de madeira e fole, com tripé, um balde, uma lona que servia como fundo neutro para as fotos, uma toalha e uma tesoura” e as nomearam “como se fossem estabelecimentos comerciais fixos e foram se proliferando”. A exemplo: Foto Sergipe e Foto Esperança.
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Entre as décadas de 1950 e 1980, cresceu a procura por fotos instantâneas na capital. “A população procurava esses retratistas, pois queriam fotos para serem utilizadas em documentos de identificação”, afirmou Cândida.
Além dos formatos 2x2, 2x4, 3x4, existiam outros adequados para postais, “que geralmente eram guardados como recordação e enviados aos parentes mais distantes, para a namorada ou para ilustrar algum quadro na parede de casa”.
Apesar da movimentação comercial, a relação dos profissionais com o poder público não era das melhores. Em 1969, eles foram remanejados da praça General Valadão para a avenida Coelho e Campos sob argumento da visita do presidente Emílio Garrastazu Médici.
“O único hotel de Aracaju que poderia receber um presidente era o Hotel Palace. Esse presidente chega a Sergipe, os fotógrafos são tirados da Praça General Valadão e eles vêm para o mercado”, afirmou Cândida. Os fotógrafos lambe-lambes ficavam em frente ao hotel, que acomodava a elite da época, apontou o estudo.
A falta de espaço para os profissionais nos mercados Thales Ferraz, Antônio Franco e Maria Virgínia Leite Franco (denominação atual), inaugurados em 2000 após reforma e ampliação, provocou insatisfação. “O mercado ficou lindo, mas não houve uma preocupação em deixar um espaço para que os que queriam continuar na profissão pudessem desenvolver suas atividades”, disse Oliveira.
Segundo o estudo, eles precisaram pagar aluguel e dividir espaço com box de utilidades para continuar na área. Isso até 2018, quando a dona do local resolveu romper o contrato e ceder para um barbeiro. A saída, segundo relatos colhidos pela pesquisadora, foi montar uma tenda ao lado do box para manter a clientela.
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Cândida Oliveira lembra que os fotógrafos, como as pessoas conheceram até os anos 2000, com caixote e tripé, não existem mais. No entanto, alguns permanecem no mercado central e adotam a máquina digital e impressora para entrega de foto instantânea, mesmo com estrutura precária: faltam iluminação, maquinário e espaços adequados, de acordo com a pesquisa.
“Então, eles resistem de forma mais moderna, mas a gente vê uma postura de manter viva a tradição das pessoas de irem ao mercado [para] se fotografar e receber essa imagem em poucos minutos”, destacou.
Lambe-lambe ou oiti: de onde vem
A pesquisa mostra que a origem do termo lambe-lambe é diversa. Segundo as versões reunidas, os fotógrafos lambiam os equipamentos para acelerar a fixação da imagem (1), reconhecer o lado correto da chapa de metal (gravação da imagem) (2), identificar a emulsão da película fotográfica para evitar perda da foto por falta de foco ou nitidez (3).
Também há uma linha (4) que acredita que o termo esteja associado ao ferrótipo, um processo que, segundo o estudo, possibilitou “obter diretamente imagens em positivo” e permitiu “aos fotógrafos ambulantes trabalhar em diversos espaços públicos das cidades”.
Além da versão folclórica (5): “O fotógrafo oferecia brilhantina para pentear os cabelos dos clientes do sexo masculino, deixando-os com aparência de “cabelo lambido””.
Na capital sergipana, a fotografia lambe-lambe também tinha outro nome: foto oiti. “Esse termo tem como enfoque a concentração destes [fotógrafos] era localizada sob as copas de árvores oitizeiros, nas quais eram presentes na praça General Valadão. Esta árvore produz o fruto denominado oiti, daí o nome de ‘Foto Oiti’”, de acordo com a dissertação.
Resgate histórico
Orientador do trabalho, o professor Claudefranklin Monteiro afirmou que a pesquisa buscou resgatar um aspecto histórico desconhecido ou invisibilizado da cidade. “Impressionante a gente perceber como esses objetos de pesquisa vão mergulhar em camadas da memória de Aracaju e descobrir sujeitos que foram importantes para a sociabilidades e a forma de lidar com registro fotográfico.”
“Então, o lambe-lambe não é em si o objeto, mas os sujeitos que desenvolveram e implementaram uma técnica no centro de Aracaju e, assim como muita coisa, esses sujeitos e suas práticas foram engolidos pela chamada modernidade da capital sergipana”, destacou.