“Antes de anunciarem o assalto, eles me perguntaram se eu era homem ou mulher. Fiquei assustado e, como não conseguia responder, começaram a me arrastar pelo chão, com chutes, pontapé e xingamentos. Não foi a primeira violência. Nem de estranhos nem de pessoas próximas, pois mesmo a sociedade se dizendo cada vez mais inclusiva e aberta ao diálogo, ainda somos o país que mais mata pessoas trans em todo o mundo, pelo décimo terceiro ano consecutivo”.
Desde a infância, Gustavo Dias*, 25, estudante, casado, não se sentia pertencente às conversas e universo dos amigos. Não sabia explicar, mas se sentia perdido em meio aos processos identitários de gênero e, aos 15 anos, quando finalmente se descobriu um homem trans, também não se reconheceu frente ao comportamento agressivo da sociedade e, em alguns casos, da própria família.
A profissional da saúde Luciana Feijó*, 32, solteira, lésbica, também sofreu violência física e psicológica quando, depois de alguns relacionamentos heterossexuais iniciados por pressão social, assumiu um relacionamento homoafetivo para parentes e amigos
“Minha família se utilizou de todas as chantagens emocionais possíveis para que eu não vivesse a minha orientação sexual, inclusive entrando em contato com o pastor da igreja a qual frequentava para que ele pudesse me curar de algo que, sabemos, não é uma doença nem uma perversão”, conta.
Segundo o professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Eduardo Leal, a realidade dos grupos LGBTQIAP+ - sigla que representa grupos que, de alguma forma, não se identificam com a heterossexualidade ou com o conceito de que só existem dois gêneros (masculino e feminino) - no Brasil está associada à estigmatização de diagnósticos, violência e abandono, tanto por parte da sociedade como dos grupos mais próximos, a exemplo dos amigos, familiares e, algumas vezes, do próprio sistema de saúde.
Sendo assim, em 2019, ele desenvolveu o projeto de extensão "Atendimento psicoterápico e roda de escuta a pessoas LGBTQIAP+", cujo objetivo é prestar acolhimento e escuta ativa a essa população.
“Esse projeto de extensão nasceu das pesquisas realizadas no Laboratório de Acolhimento a pessoas trans, no campus Lagarto, numa experiência de transidentidade ou dissidência de gênero. Os atendimentos, desde os seus estágios iniciais, mostravam que havia uma necessidade de ir além do processo terapêutico, uma vez que, dentro do próprio viés histórico da Psicologia, a terapia para esse grupo passa por processos ambíguos de acolhimento e de diagnóstico. Não temos o propósito do diagnóstico, mas sim de promover o acolhimento e a escuta ativa a cada indivíduo e, assim, ampliamos essa escuta ativa para os outros grupos LGBTQIAP+”, explica o coordenador do projeto.
Ele conta ainda que, inicialmente, o atendimento funcionou como uma roda de escuta em grupo, a fim de que os indivíduos pudessem externar e partilhar seus pensamentos, conflitos, projetos e anseios. Entretanto, com a pandemia, houve a necessidade de promover o atendimento individual.
“Com a pandemia, muitas dessas pessoas precisaram retornar às suas casas, onde, muitas vezes, o ambiente lhes é violento psico ou fisicamente e, além disso, pode não haver estrutura para a preservação da privacidade nos diálogos. Dessa forma, foi necessário fazer sse ajusta de escuta e acolhimento individual, que também tem funcionado de maneira satisfatória”, comenta o professor Eduardo Leal.
Para Gustavo Dias*, que integrou as pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Atendimento às Pessoas Trans, no Campus de Lagarto, o projeto de extensão de atendimento psicoterápico é um momento em que consegue expandir e compartilhar seus pensamentos de forma bastante acolhedora.
“Foi algo que verdadeiramente mudou a minha vida e para melhor. É uma ferramenta de asseguramento, desejo e necessidade, na qual eu posso falar sobre mim sem me explicar ou colocar a minha questão de gênero em primeiro lugar. Participo do projeto pelo seu recorte, mas nele sou compreendido como indivíduo”, diz Gustavo.
Doutorando em psicologia e coordenador adjunto do projeto, José Stona ressalta que, desde os primeiros encontros, cerca de 50 pessoas dos grupos LGBTQIAP+ foram atendidas, das quais 35 seguiram no projeto. Ele ressalta ainda a importância de se retirar do cenário social a obrigatoriedade do atendimento psicológico com base única e exclusivamente na identidade de gênero do indivíduo.
“É inadmissível que, nos dias atuais, a identidade de gênero não-binária seja associada imediatamente a uma patologia e a acompanhamento psicológico, como se houvesse um distúrbio em ser gay, lésbica, bissexual, trans, queer etc. Esse acompanhamento, se e quando existir, deve ser pautado nas características do indivíduo em si, num espaço de acolhimento e escuta. É isso que fazemos com todos que desejam estar ali”, explica José Stona.
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Através da escuta psicoterápica, Luciana Feijó* conta que pode ser acolhida sem os diversos julgamentos morais e/ou religiosos da sua família e de alguns dos seus amigos, o que fez com que ela mesma se acolhesse e se respeitasse mais diante dos inúmeros confrontos sociais que encontrou.
“Quando a gente fala, a gente se escuta e se torna cada vez mais generosa com as ações, e os caminhos que trilha. Eu ficava buscando respostas para dúvidas que não eram nem nunca foram minhas, focando em um assunto que só diz respeito a mim e as pessoas com as quais escolho compartilhar isso. Sentar para partilhar isso com outras pessoas não é um tratamento, não existe doença. É um acolhimento, coisa que muitas vezes sequer temos das pessoas mais próximas. Isso me deu muita liberdade para viver e sentir”, diz Luciana.
Qualquer pessoa pertencente aos grupos LGBTQIAP+ com idade igual ou superior a 18 anos pode participar do atendimento psicoterápico. Os interessados devem se inscrever através do Instagram do projeto e aguardar a disponibilidade de horário, que será informada através de algum membro.
* Os nomes das pessoas atendidas foram modificados a fim de preservar suas identidades.
Jéssica Vieira - Ascom UFS
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