Qua, 18 de outubro de 2023, 10:26

Se formar para quê? A Educação Superior e o mundo do trabalho
Luiz Eduardo Oliveira

O Censo da Educação Superior 2022 divulgado na última terça-feira, dia 10/10, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), nos fornece vários elementos para reflexão acerca das relações entre Educação Superior e o chamado mundo do trabalho. Afinal, a conclusão de um determinado curso universitário, de graduação ou pós-graduação, é o portal de entrada para o mercado de trabalho, ou “mundo do trabalho”, como denomina metaforicamente a LDBEN de 1996. Tal estrutura, como se sabe, encontra seus fundamentos no processo de formação do Brasil, seja com os colégios dos padres jesuítas, que priorizaram, em Portugal e suas colônias, as Humanidades e os Estudos Maiores, não sendo a instrução elementar um componente do seu programa de ensino, seja com as reformas de Pombal, que atingiram só parcialmente, e apenas no reino, seus objetivos. No caso do dispositivo legal de 6 de novembro de 1772, que criou um sistema de administração das chamadas Escolas Menores, seu caráter seletivo era explícito: “nem todos os Individuos destes Reinos, e seus Dominios se hão de educar com o destino dos estudos Maiores, porque delles se deve deduzir os que são necessariamente empregados nos serviços rústicos, e nas Artes Fabris, que ministram o sustento aos Povos, e constituem os braços, e mãos do Corpo Político” (Portugal, 1829, p. 613), dizia a lei.

Quando o Brasil tornou-se independente, a preocupação do Estado com as Primeiras Letras, isto é, com o ensino de ler, escrever e contar, a santíssima trindade da educação das crianças, objeto da Lei de 15 de outubro de 1827, data comemorativa do dia dos professores - ou das professoras? -, só entrou em pauta no parlamento depois que foram regulamentados os Cursos Jurídicos do Império, a 11 de agosto daquele mesmo ano, pois o que interessava aos nobres deputados e senadores era a formação de quadros políticos e burocráticos para o país, interesse que permaneceu na República, atravessou o século XX e, mesmo hoje, é uma crença que se repete, por mais anacrônica e incompatível que seja com a estrutura da sociedade atual, como testemunham os 1.896 cursos de Direito espalhados pelo país, segundo dados da OAB de 2022, e toda a movimentação que causou em Aracaju o concurso público do Tribunal de Justiça de Sergipe, realizado no dia 15/10/2023, para o qual se inscreveram 30.452 candidato(a)s para o cargo de Técnico Judiciário, a maioria, claro, com nível superior, incluindo dezenas de milhares de bacharéis e advogados desempregados ou concurseiros de plantão.

No caso do Ensino Médio, conhecido como gargalo da garrafa da Educação Básica, sempre foi algo fantasioso no Brasil, desde a então chamada Instrução Secundária, parente distante do Ginásio, do Clássico, do Científico e do Segundo Grau. Quando se institucionalizou, em 1837, ano de fundação do Imperial Colégio de Pedro II, ainda hoje existente como única instituição federal de Educação Básica do país, e que no oitocentos servia de modelo ideal para os Liceus, Atheneus e Colégios que ofereciam esse tipo de instrução para as elites locais, teve que enfrentar a concorrência desleal dos Exames de Preparatórios, que eram exames feitos por matéria de ensino, de cuja aprovação dependia o ingresso dos alunos (sim, nessa época só havia homens, em sua maioria brancos, ou mamelucos suficientemente claros para serem considerados brancos, ou mulatos suficientemente "domesticados" para que pudessem conviver com os brancos). Nos tempos de D. João, isto é, entre 1808 e 1827, bastava que um Professor Público, versão atualizada do Professor Régio pombalino, passasse um atestado de suficiência para que o seu ingresso nos “Estudos Maiores” fosse garantido. Assim, só mesmo quem não tinha família influente para contratar bons professores ou pagar por atestados tinha que passar 7 anos no secundário, depois de adquiridos os rudimentos do escrever, ler e contar.

Essa situação não mudou na República Velha, acentuando-se ainda mais com as reformas educacionais do período getulista, tanto a de Francisco Campos, de 1931, quanto a do Estado Novo, no ministério de Capanema, de 1942, que deram inegável organicidade ao Ensino Secundário brasileiro, mas deixavam patente em suas exposições de motivos que esse grau de instrução se dedicava à formação de lideranças, isto é, àqueles que teriam acesso às Universidades, criadas nessa mesma época. As discussões acerca da formação profissional, do caráter científico, formativo, humanístico desse tipo de instrução foram sempre muito férteis, tanto do ponto de vista propriamente político-legislativo quanto acadêmico, mas nenhuma lei foi capaz de romper com o sistema de exames - de Admissão, de Entrada, de Suficiência, Vestibular, ENEM -, que, de certa forma, inabilitam a funcionalidade da Educação Básica, uma vez que direcionam os processos educativos e os componentes curriculares para um objetivo único, que é o ingresso na Educação Superior. Por outro lado, dão margem e incentivam, indiretamente, os conglomerados empresariais da educação, que têm permissão legal para viabilizar outros meios, de mais fácil acesso, para atingir tal fim, via supletivos ou qualquer outro tipo de preparatório rápido, com professores treinados especialmente para dicas de como acertar questões etc., tal como nos cursinhos de preparação para vestibular ou concursos públicos.

Essa margem deixada para a iniciativa privada é histórica, e funciona sempre como efetivação do que o Estado estabelece como regra geral, ampla e ambígua o suficiente para permitir a ação de sistemas paralelos de educação mais voltados para o mercado de trabalho. São os casos do SENAI, que já nos legou um presidente, e do SENAC, SESC e SEBRAE, que são sistemas paralelos voltados para a indústria, o comércio e o empreendedorismo mais garantidores do ingresso do mundo do trabalho do que a escola e a universidade, algo que foi suprido pelo Estado através da criação das Escolas Técnicas e Agrotécnicas. A lei 5.692, de 1971, da ditadura, assinada pelo ministro Jarbas Passarinho, e que nos regeu até 1996, ano da atual LDBEN, buscou dar uma formação profissional no Ensino Médio, em concorrência à formação do segundo grau completo, que habilitava para fazer o vestibular. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, por sua vez, estabelece, já no segundo parágrafo do artigo primeiro, que a educação escolar deve vincular-se ao “mundo do trabalho e à prática social”, estabelecendo, ainda que indiretamente, a Educação Superior como via principal de acesso, extintas que foram as licenciaturas curtas e alguns cursos técnicos e/ou pedagógicos. Assim, a partir dos 7 anos de idade, o(a) brasileiro(a) precisa enfrentar 12 anos de escolarização básica, dividida entre Ensino Fundamental e Médio, para só então decidir que papel social terá na vida e assim entrar no almejado “mundo do trabalho”. Embora a Educação Infantil e Especial sejam contempladas pela lei, da qual decorrem as políticas de inclusão, esse são campos deixados intencionalmente para a livre exploração da iniciativa privada, sobretudo para aquelas famílias de classe média alta, heteronormativas ou não binárias, cujo casal trabalha e precisa deixar seu(ua)s filho(a)s pequeno(a)s em creches seguras, tanto quanto as que algumas universidades fazem para os rebentos do seu corpo docente ou técnico-administrativo.

Como notou Lauro de Oliveira Lima já na década de 1970 (Lima, 1975), a universidade é o único grau de escolaridade que não pode ser substituído por um exame, como de suficiência, supletivo etc. Assim, é na Educação Superior que, tradicionalmente, são depositadas as esperanças das famílias pobres e de classe média para que seu(ua)s filho(a)s possam ascender socialmente, ter um emprego, uma função social, seja ele(a) um(a) cidadão(ã) crítico(a) ou não. Mas não é isso que o Censo mostra, pois menos de 25% dos jovens de 18 a 24 anos têm acesso à Educação Superior no país. Desse modo, 75,7% das pessoas dessa faixa etária não concluíram a Educação Básica e somente 43,4% delas conseguiram concluir o Ensino Médio. As razões para tal resultado nós sabemos, e mesmo se as não soubéssemos elas seriam fáceis de ser deduzidas: o desemprego e o subemprego tornam insustentável a manutenção de filho(a)s adolescentes ou adultos na escola, antes e depois da pandemia decorrente do COVID 19. O mesmo ocorre com os alunos na Educação Superior: a sua permanência e conclusão em tempo hábil vai depender do poder econômico da família ou das políticas de permanência da instituição, através de bolsas especialmente direcionadas a aluno(a)s com comprovada vulnerabilidade econômica, o que, infelizmente, não têm chegado a diminuir de maneira significativa a taxa de retenção da graduação (Oliveira e Meneses, 2017).

Conforme o Censo, dos 22,5 milhões de jovens brasileiro(a)s de 18 a 24 anos, 21,2% largaram o Ensino Médio; 9,9% ainda o frequentam; 1,2% ainda não concluíram o Ensino Fundamental; 20,2% frequentam o Ensino Superior e somente 4% o concluíram. Tal quadro apenas corrobora uma tendência da própria história da Educação Superior no país: a resistência à sua democratização (Cunha, 2007), a despeito das recentes políticas inclusivas. Segundo o Diretor do Inep, Carlos Moreno Sampaio, cerca de 25% das vagas não são preenchidas, mesmo em Medicina. É preciso, portanto, calcular a oferta a partir da demanda social, o que parece não ter ocorrido com muitos cursos que foram criados depois do REUNI, em 2007.

Quem é mais antigo na universidade pública acostumou-se a tomá-la como parâmetro a partir do qual poderíamos medir - e regular - o sistema privado, que teve um crescimento acelerado bem maior do que as instituições públicas desde o momento de sua fundação. Quando essa suposta pessoa observa os números do Censo atual, percebe que, dos 4,7 milhões de ingressos na Educação Superior em 2022, 4,3 milhões se matricularam na rede privada e, desse número, 66% optaram pela Educação a Distância, o que corresponde a uma diminuição do número de vagas no ensino presencial e demonstra que os conglomerados empresariais da educação perceberam que, nessa modalidade, gasta-se menos e lucra-se muito mais, uma vez que os cursos, sobretudo as licenciaturas, poderão funcionar com alguns poucos professores conteudistas ou coordenadores de disciplina e com grupos cada vez maiores de “tutores”, que ganham menos e podem ser contratados temporariamente. A questão, aqui, ao contrário do que consensualmente se pensa, não é a qualidade, um mito ao qual sempre se recorre quando se trata de educação, mas nunca se questiona em profissões relacionadas ao Direito ou à Medicina, mas as condições de trabalho, sobretudo a precariedade profissional e salarial, pois se o seu crescimento significa também um maior número de pessoas com acesso à Educação Superior e, em certo sentido, a sua democratização - os cursos privados são mais baratos e os públicos abrangem mais pessoas -, representa também a redução do campo profissional da Educação Superior, o que vai desencadear uma crise nos programas de pós-graduação stricto sensu, que, com o seu crescimento institucional, tanto nas universidades públicas quanto em algumas privadas, formarão um número cada vez maior de Mestres e Doutores desempregados, que vão passar um tempo indeterminado tentando ser admitidos em algum concurso para uma universidade pública.

Em muitos casos, os Mestres e Doutores, e mesmo aqueles que investem uma quantidade razoável de dinheiro para fazer algum curso de pós-graduação lato sensu de fim de semana, já são professores da Educação Básica da rede pública ou privada. Em Sergipe, há um fenômeno interessante: os professores efetivos da Educação Básica da rede estadual raramente têm Mestrado ou Doutorado, mas, como o governo não abre concurso público há mais de 10 anos, boa parte do(a)s professore(a)s que são contratados temporariamente através do PSS (Processo Seletivo Simplificado) tem Doutorado, para se ter uma ideia da demanda reprimida só no campo das Humanidades.

Portanto, o Censo da Educação Superior de 2022 deve servir de alerta para atentarmos para nosso papel nessa transição que há entre os últimos graus de escolarização, isto é, a graduação e a pós-graduação, e o mundo do trabalho. Se a educação escolar não cumpre o seu papel formativo e preparatório para o mundo do trabalho, delegando tal função para a iniciativa privada, que, criando sistemas paralelos, sempre fomenta e se antecipa às demandas sociais, buscando espaço legislativo mediante suas redes de sociabilidade e influência política para institucionalizar-se, a Educação Superior, voltada para si mesma, forma um profissional qualificado e ideal cujo poder simbólico do diploma já não abre tantas portas quanto antes, para não falar do seu saber, ou de sua relação com os saberes socialmente institucionalizados, que muitas vezes não é compatível com suas reais possibilidades e condições de trabalho. Assim, ou a universidade se abre para a sociedade ou permanecerá formando quadros altamente qualificados para si mesma, para se retroalimentar com a renovação periódica de seus quadros, como faziam os jesuítas e demais ordens religiosas em seus colégios e clausuras de formação.

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Luiz Eduardo Oliveira é professor do Departamento de Letras Estrangeiras (DLEV) e coordenador da Cátedra Marquês de Pombal.


(Foto: Adilson Andrade/AscomUFS)
(Foto: Adilson Andrade/AscomUFS)

REFERÊNCIAS

CUNHA, Luís Antonio. A universidade temporã: o ensino superior, da colônia à era Vargas. 3. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2007.

LIMA, Lauro de Oliveira. Estórias da educação no Brasil: de Pombal a Passarinho. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora Brasília, 1975.

OLIVEIRA, Luiz Eduardo e MENESES, Jonatas Silva (orgs.). (Re)Pensando as licenciaturas. São Cristóvão: Editora UFS, 2017.

PORTUGAL. Collecção da Legislação Portugueza desde a ultima compilação das ordenaçõe, redigida pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Na Typographia Maigrense, 1829.


Atualizado em: Qua, 18 de outubro de 2023, 10:38
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