Professor do Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), dos Programas de Pós-Graduação em Arqueologia e em Antropologia, e responsável pela coordenação científica do Instituto Afro Origem: dos Naufrágios aos Quilombos, Gilson Rambelli há duas décadas se dedica às buscas subaquáticas por vestígios de um dos últimos navios escravagistas a atracar no Brasil.
O Camargo, como era chamado o brigue - denominação para um navio de dois mastros - foi afundado no Rio Bracuí, em Angra dos Reis (RJ), no fim de 1852. Naquela época, a embarcação havia sido utilizada para transportar cerca de 500 africanos, apesar da publicação, dois anos antes, da Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico de pessoas escravizadas ao País.
Desde 2022, o professor Gilson Rambelli vem mergulhando nas águas do Bracuí em busca de provas materiais sobre esse naufrágio, tentando esclarecer mistérios que ainda cercam a história do tráfico de escravizados para o Brasil. A pesquisa, de relevância internacional, foi matéria de capa do The Washington Post, um dos principais jornais do mundo, no final do mês de março.
“Os objetivos do projeto são bastante complexos e transdisciplinares, porque envolvem diferentes áreas do conhecimento e sobretudo envolvem a comunidade quilombola da Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis, que é remanescente desse momento tão obscuro e criminoso da nossa história. O nosso objetivo, enquanto arqueólogos, é conhecermos melhor a parte da construção naval, entender como se fazia esse tráfico clandestino e, sobretudo, queremos confirmar se eles traficavam crianças. Poucas pessoas falam isso: para caberem 500 pessoas em um barco nesse formato, só podiam ser crianças. Isso ninguém conta nos livros de história e é muito grave, além de ser um crime hediondo contra a humanidade”, relata Gilson Rambelli.
Se confirmada a descoberta de um dos últimos navios escravagistas que desembarcou africanos escravizados ao Brasil, será possível revelar o envolvimento norte-americano, especialmente de Nova Iorque, no comércio ilegal de escravizados durante décadas.
“Quando vamos mexendo, estamos querendo contar a história por meio do que a cultura material pode revelar para nós. Temos uma equipe multidisciplinar na parte de história trabalhando diretamente com a Universidade Federal Fluminense (UFF) e também estão envolvidos trabalhos com geofísica, além de uma gama de profissionais. A gente quer contar a história dos que não estão na história, as pessoas que foram excluídas e que agora estamos dando essa legitimidade. E fazer a justiça do jeito que deve ser feita”, ressalta Gilson Rambelli.
As buscas por vestígios do Camargo vinham sendo feitas por meio de um projeto do Instituto AfrOrigens, voltado ao mapeamento do tráfico transatlântico de africanos, incluindo o brigue. Além das buscas no fundo do rio com o uso de tecnologias oceanográficas, a memória oral do quilombo Santa Rita do Bracuí, localizado às margens do rio Bracuí, auxiliou os pesquisadores a traçar o caminho do Camargo. A comunidade quilombola possui cerca de 130 famílias descendentes de escravizados africanos.
O reitor da Universidade Federal de Sergipe, Valter Santana, destaca os resultados importantes obtidos por projetos capitaneadas pela administração da UFS, que oportunizam o desenvolvimento de ações de grande impacto para a sociedade. “A qualidade das pessoas que compõem a UFS impulsiona a administração e produz efeitos fantásticos. Estamos diante de mais um dessas grandes ações com o projeto coordenado pelo professor Gilson Rambelli, um pesquisador de destaque internacional na área da arqueologia subaquática, que apresenta à sociedade uma pesquisa que pode mudar o contexto histórico com relação ao período de mercantilização de escravizados. Então, por meio do trabalho do nosso professor e de alunos de graduação e pós-graduação, a história poderá ser recontada ou confirmada, mudando, inclusive, essa trajetória que conhecemos hoje, fruto da competência e relevância nas pessoas especificamente das pessoas que fazem a Universidade Federal de Sergipe”.
Para o pesquisador, essa é uma discussão que envolve fortemente uma reparação histórica. “Essa matéria que saiu no The Washington Post está dando uma repercussão envolvendo até a presidência dos Estados Unidos, no caso o Trump. A arqueologia vem dar ferramentas, porque a partir do momento que você traz à tona essa descoberta, literalmente, você traz à tona a história desse navio, mostra a materialidade dele e confirma essa passagem. Então, se eles esconderam as provas, nós estamos trazendo as provas de volta. Tenho trabalhado em Moçambique e esse ano irei também a Senegal, porque estamos preparando especialistas africanos para que tenham autonomia para fazerem suas próprias pesquisas”, reverbera o professor.
As pesquisas do projeto continuam e no mês de maio a equipe deverá realizar outro mergulho na Baía de Bracuí, em Angra dos Reis (RJ), para tentar conhecer mais sobre a embarcação afundada há mais de 150 anos.
Financiada pelo Slave Wrecks Project, rede americana de museus Smithsonian que rastreia naufrágios no Oceano Atlântico, a pesquisa é realizada pela UFS e UFF, em parceria com duas instituições de ensino e pesquisa dos Estados Unidos. São elas: George Washington University e Smithsonian Institution National Museum of African American History and Culture.
“É importante enfatizar que esse projeto envolve também um projeto de mestrado do Júlio César Marins, sobre a discussão do Camargo. Envolve ainda o Luís Felipe Santos, que está realizando pós-doutorado e está trabalhando com a gente, e é importante salientar o Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos, porque tivemos a participação do professor Paulo Camargo, que também é do Departamento de Arqueologia”, ressalta Rambelli.
O Caso Camargo
O capitão norte-americano Nathaniel Gordon é um dos principais personagens do caso brigue Camargo. Isso porque ele resolveu colocar fogo e afundar a própria embarcação para ocultar provas do crime de tráfico negreiro no Brasil.
Gordon decidiu se livrar do navio após descobrir que estava sendo procurado pela patrulha naval brasileira. Antes disso, ele desembarcou cerca de 500 moçambicanos em Angra dos Reis para serem escravizados nas fazendas de café do Vale do Paraíba.
O capitão conseguiu fugir do Brasil disfarçado com roupas femininas, mas, dez anos depois do episódio, foi preso no comando de outra embarcação escravagista. Nos Estados Unidos, ele foi condenado ao enforcamento pelo crime de tráfico de africanos.
Ascom UFS