Na historiografia sergipana, a presença das ideias anarquistas carece de uma maior atenção, não só na Primeira República, quando se constituía na principal corrente do movimento operário no Brasil, mas também no tempo da Nova República, quando grupos de rock e fanzines traziam a flâmula e a chama libertárias. Sobre o último caso, o relatório final da Comissão Estadual da Verdade registrou documento da Agência de Salvador e Sergipe do SNI (ASV) sobre a expansão dos anarquistas e do movimento punk, com zines libertários na cidade de Aracaju, encontrados na “I Mostra Internacional de Publicações Alternativas”, realizada na Biblioteca Pública da Bahia, em setembro de 1989 (REGINATO e REIS, 2021: p. 304).
De um modo geral, a historiografia local não deu a devida atenção às ideias anarquistas na Primeira República, como no artigo pioneiro de Manoel Cabral Machado, publicado na Revista do Aracaju, em 1962, que afirmava que a consciência de classe emergiu somente na década de 1910, com o Centro Operário, que, no início, possuía um caráter mutualista e associativo, sem uma ânsia inconformista, não sendo mencionada a presença do ideário anarquista em Sergipe (MACHADO, 1962: p. 242).
No início dos anos 1980, o projeto de levantamento sobre a imprensa operária em Sergipe, capitaneado por Maria das Graças Meneses Moura, trouxe leituras díspares sobre essa presença. De um lado, a coordenadora manteve a leitura de que, apesar da “apologia ao socialismo” do jornal O Operário (1896), que tinha João Ferro como redator principal, não foi mencionada a presença das ideias anarquistas nos jornais analisados, no período de 1891 a 1964. (MOURA, s/d: p. 5).
Entretanto, um jovem pesquisador vinculado ao projeto, Jorge Marcos de Oliveira, publicou artigo sobre o ideal anarquista no jornal O Operário (1896), na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, em que matizava tal leitura. Mesmo não querendo discutir se João Ferro era anarquista ou não, o articulista identificou seus artigos “com os ideais libertários”, exemplificando que os tipógrafos propunham uma “(...) igualdade radical das camadas sociais, o desaparecimento do analfabetismo do operariado, o equilíbrio entre o capital com o salário extripando [sic] as especulações criminosas contra as classes proletárias” (OLIVEIRA, 1987: p. 93 e 94).
No Brasil, P.-J. Proudhon, como um dos autores mais expressivos, ao lado de socialistas utópicos, como Robert Owen, Charles Fourier e H. de Saint-Simon, tem sido registrado por historiadores do anarquismo, da segunda metade do século XIX ao início do século XX. Contudo, havia contradições do pensamento de Proudhon, pois se, avançava com relação ao individualismo niilista de Max Stirner, adotando uma perspectiva revolucionária, com um “contestador implacável de qualquer forma de Governo e de Estado, não é menos verdade que, quando se propõe a analisar a família e o papel da mulher, revela-se um empedernido reacionário” (VARES, 1988: p. 15).
Do mesmo modo, os textos de João Ferro e Nevio Vianna ecoavam o mutualismo de Proudhon, ainda que existisse contradições da colaboração entre o capital e o trabalho, que os aproximava mais do reformismo operário do que do anarquismo, constituindo-se em um mosaico contraditório de ideias socialistas, positivistas e evolucionistas.
No início da década de 1990, Ibarê Dantas dissertou sobre as greves em Sergipe no período de 1915-1930, não registrando nenhuma participação direta dos anarquistas ou simpatizantes entre os grevistas (DANTAS, 1992). Em suas pesquisas sobre a imprensa operária na Primeira República, este historiador também identificou, no jornal O Operário(1891), ideais anarquistas de Pierre-Joseph Proudhon em torno do mutualismo, mas, como dito, o ecletismo dos artigos talvez tenha impedido de percebermos uma influência mais incisiva das ideias anarquistas em Sergipe (DANTAS, 2016: p. 42).
Mais recentemente, Frederico Lisboa Romão defendeu que, nos primórdios das organizações e manifestações operárias, havia pouca articulação entre as entidades operárias de Sergipe com outros estados, identificando apenas citações curtas em jornais como A Voz do Trabalhador (Confederação Operária Brasileira - COB), A Plebe ou A Nação. Nesse sentido, cita que o militante anarquista, José Elias, encarregado de expandir as ações da COB para o nordeste, abdicou de Sergipe no circuito de suas palestras, em março de 1914 (2000: p. 83).
Estranhamente, a militância anarquista do sergipano Manoel Curvelo de Mendonça (1870-1914), nascido no Engenho Quintas, na cidade de Riachuelo, e formado pela Faculdade de Direito, de Recife, passou ao largo dos historiadores sergipanos, tendo sido recuperada nas análises literárias do seu principal livro Regeneração (1906), que se vinculava à corrente tolstoiana, no início do século XX, ou a sua participação na criação, em 1904, da Universidade Popular de Ensino Livre. Suas ideias de que a literatura não era um fim em si mesmo, mas um “instrumento de ação social” (AQUINO, 2011: p. 128), o aproximava do chamado “romance social”.
Novas leituras, empreendidas pela nova geração de historiadores, como Alessandro Cardoso Ribeiro (2022), identificaram rastros das ideias anarquistas em Sergipe, especialmente da repercussão intelectual de P.-J. Proudhon, M. Bakunin, P. Kropotkin e outros anarquistas em Sergipe, seja por meio de artigos de jornais, correspondências ou livros divulgados na imprensa operária.
Em uma leitura a contrapelo, este historiador percebeu a presença anarquista no discurso do empresariado industrial, como Sabino Ribeiro, dono da fábrica de tecidos Confiança, que, em 1920, afirmava que
Felizmente para nós, o anarquismo não assentará, tendo nesse meio em que o operário nunca foi uma simples máquina, mas um cooperador amigo e inteligente (RIBEIRO, 2022: p. 53).
Seguindo a sugestão de Alessandro Ribeiro, a revista anarquista Vida, publicada nos anos de 1914 e 1915, no Rio de Janeiro, apresentou indícios do ideário anarquista em Sergipe, no exemplar inaugural com a publicação da poesia Justiça, de Hermes Fontes (n. 1, 30 nov. 1914: p. 9). Mas também por menções de recebimento de correspondência, como no caso de Lourival Fontes, que enviara fotografia para a redação da publicação (n. 3, 31 jan. 1915: p. 16), ou EfrenLima, anarquista e escritor, que registra envio de carta para Astrogildo Pereira a partir de Aracaju, colaborando também com artigos sobre a educação libertária para a revista (n. 4, 28 fev.1915: p. 64).
Em levantamento sobre a biografia de Efren Lima, encontrei informações incompletas e, mesmo contraditórias, sobre o militante anarquista. Armindo Guaraná, em seu Dicionário Biobliográfico Sergipano, afirmava da existência de jornalista sergipano de mesmo nome, que, nascido nasceu a 8 de janeiro de 1887, em Aracaju, atuara em jornais vinculados “como “Diário da Manhã” tendo sido publicada a primeira no número de 10 de novembro de 1917”. Redigiu, durante sua permanência nos Estados Unidos da América, de “julho de 1919 a setembro de 1920, a edição portuguesa da “La Hacienda” editada na cidade de Buffalo”, do Estado de Nova Iorque (GUARANÁ, p. 126). Contudo, em dissertação sobre o militante Antônio Bernardo Canellas, Bruno Rodrigo Tavares Araújo escreve que o militante, que colaborou com o jornal A Semana Social, de Maceió, era um “anarquista e escritor pernambucano” (2015: p. 114)
Assim, diferentemente do registrado até então pela historiografia local sobre o tema, a presença de um militante anarquista de peso na década de 1910, na cidade de Aracaju, que colaborava com as principais publicações anarquistas, precisa ser mais bem estudada, principalmente no que se refere à questão da educação operária, lembrando que a Escola Operária Horácio Hora foi criada, em 8 de outubro de 1911, pelo Centro Operário Sergipano.
Entre as lacunas historiográficas em Sergipe, a história social precisa dedicar-se sobre o movimento operário na Primeira República, após certo hiato das últimas gerações de historiadores, especialmente voltando-se aos que combateram e combatem o conservadorismo e, às vezes, o reacionarismo de parte da sociedade sergipana, tão presentes na memória social institucionalizada, como nomes de escolas ou logradouros públicos.
Antônio Fernando de Araújo Sá é professor do Departamento de História da UFS
BIBLIOGRAFIA
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