Ter, 19 de novembro de 2024, 11:44

Em memória dos oitenta anos do assassinato de Marc Bloch: a atualidade de um historiador antifascista
Antônio Fernando de Araújo Sá é professor do Departamento de História da UFS

Nesse ano tão difícil de 2024, rememorar as efemérides dos oitenta anos do assassinato de Marc Bloch pela Gestapo, em 16 de julho de 1944, em Saint Didier de Formans, perto de Lyon, bem como o centenário do seu livro clássico Os Reis Taumaturgos podem servir um excelente ponto de partida para enfrentarmos à ascensão das ideias e práticas fascistas no mundo contemporâneo. Como “a face do fascismo, e suas sequelas, salta dos livros didáticos e ocupa as ruas”, revisitar sua vida e obra talvez nos sirva de modelo para o bom combate contra a “normalização” das práticas fascistas (SILVA e SCHURTER, 2022: p. 120 e 131).

Ao lado de Lucien Febvre, Bloch revolucionou a historiografia contemporânea com a revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, lançada em 15 de janeiro de 1929, sendo que seu livro póstumo, Apologia da História ou o Ofício do historiador (1949), pode ser considerado um manifesto inacabado do grupo que girou em torno da revista.

Do ponto de vista sociopolítico, o final de sua trajetória de vida é exemplar da luta antifascista na França, engajando-se na resistência à ocupação alemã, entre finais de 1942 e início de 1943, como membro do Movimento Unificado da Resistência, em Lyon. Como escreveu Lucien Febvre, ao abandonar a legalidade, Bloch “se lançou valentemente a essa vida clandestina da Resistência, da qual, para quem não a conheceu, resulta impossível imaginar os perigos, as fadigas, os contínuos alertas e também as satisfações”. Capturado pela Gestapo, mesmo barbaramente torturado no forte de Montluc, ele permaneceu inabalável em sua retidão moral, honrando a ciência e a humanidade (FEBVRE, 1992: p. 43)

Em sua reflexão sobre a rápida derrota das tropas francesas frente às tropas nazistas alemãs, testemunhada em A Estranha Derrota, Bloch escreveu um “documento em que o especialista do passado confronta o presente”, adotando uma crítica a ausência de solidariedade coletiva da nação francesa, quando intelectuais, proprietários e trabalhadores não compreenderem o que estava em jogo, pois “o temor de perder pequenas vantagens de grupo deixou a pátria quase desarmada frente ao inimigo”. Assim, apesar de “pouco interessado no específico das ideologias partidárias”, Bloch “se manifesta fervorosamente republicano, democrático, antiautoritário” (GODOY & HOURCADE, 1992: p. 19 e 20).

Do ponto de vista historiográfico, revisitar sua obra, ao lado da de L. Febvre, serve como tentativa de recuperar a matriz originária da corrente e seus paradigmas e abordagens para o enfrentamento da atual crise de paradigmas no campo da história. Como sugere Carlos António Aguirre Rojas (2004: p. 160), um dos principais desafios atuais dos Annales é o de vincular-se novamente à história contemporânea, em termos intelectuais, tornando-se o centro de estudos dos fatos e processos do tempo presente e, ao mesmo tempo, intervindo nos debates sociais, políticos e intelectuais em curso no mundo.

Já o centenário de Os Reis Taumaturgos (1924) explicita um modelo de renovação historiográfica, construindo, a partir de um documento veneziano do século XIV, a sensibilidade moldada na consciência coletiva através do milagre real. Situando o fenômeno entre o século XI e XII até o final da modernidade, Bloch elabora uma análise comparativa dos processos de desenvolvimento e difusão da prática de curar a escrófula, por parte dos reis na França e Inglaterra, utilizando-se de fontes as mais diversas – iconografia, folclore etc. - para recuperar todo um sistema de crenças em torno da figura real. Deste modo, o livro formula questões teórico-metodológicas que servirão de base para um programa historiográfico no campo da antropologia histórica, que se mostrará vigoroso até o presente. Curiosamente, esta obra não encontrou grande repercussão à época de sua publicação, tornando-se mais bem conhecido a partir dos anos 1960, com a difusão da história das mentalidades (GODOY & HOURCADE, 1992: p. 10-11).

Entretanto, mais que a história das mentalidades, Bloch nos oferece, nessa obra, uma “nova história política”, ou melhor, uma antropologia política histórica, de que, segundo Jacques Le Goff, Os Reis Taumaturgos “serão o primeiro e sempre jovem modelo”. Nessa proposta, busca-se uma “história do poder na qual este não seja nem separado de suas bases rituais nem privado de suas imagens e de suas representações”. Portanto, “é necessário introduzir no modo de produção feudal a produção do simbólico” (LE GOFF, 1993: p. 36-37).

Tanto em Os Reis Taumaturgos, quanto em A Estranha Derrota, evidencia-se a pena renovadora da historiografia de Bloch, apesar de serem escritos em contextos e objetivos diferentes. Em ambos os livros as marcas do historiador carregam sua concepção de história, em que o “presente bem referenciado e definido dá início ao processo fundamental do ofício do historiador: ‘compreender o presente pelo passado’ e, correlativamente, ‘compreender o passado pelo presente’”. Para Bloch, a “’faculdade de apreensão do que é vivo..., qualidade suprema do historiador’, não se adquire e exerce senão ‘por um contato perpétuo com o hoje’. A história do historiador começa a se fazer ‘às avessas’” (LE GOFF, 2001: p. 25).

A dialética passado-presente, tão cara à sua concepção de história, torna-se, assim, fundamental para compreendermos sua vida e obra, que trazem a marca da história viva. Em Marc Bloch, o homem de pensamento e de ação se fundem na confluência entre a profissão de historiador, estudioso do passado “que provinha de uma amplíssima concepção da dimensão humana, e uma decisão de atuar no sentido do respeito a essa Humanidade quando ela era, como nunca, brutalmente achincalhada pela barbárie fascista”. Desse modo, o ineludível compromisso do cidadão e o passado converte-se, ao mesmo tempo, “em imprescindível ferramenta de conhecimento” (GODOY & HOURCADE, 1992: p. 24 e 37).

Portanto, rememorar Marc Bloch é insistir que a verdade histórica se tornou um ato necessário de coragem cívica, pois sua contundente “defesa da história”, de que a produção do conhecimento histórico se pauta em um método analítico para a construção de uma síntese científica, deve servir de norte para enfrentar as fraudes e mentiras disseminadas pelas redes sociais, que, em geral, atentam contra a democracia. Mais do que nunca, a história tornou-se importante para o exercício da cidadania.

* Agradeço a gentileza dos comentários críticos de Bruno Alvaro e Maria Beatriz.

REFERÊNCIAS

BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio. França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BLOCH, Marc. Estranha Derrota. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011.

FEBVRE, Lucien. Marc Bloch fusilado. In: GODOY, Gigi e HOURCADE, Eduardo (orgs.). Marc Bloch: Una historia viva. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1992.

GODOY, Gigi e HOURCADE, Eduardo. Marc Bloch. El pulso de uma historia viva. In: GODOY, Gigi e HOURCADE, Eduardo (orgs.). Marc Bloch: Una historia viva. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1992.

LE GOFF, Jacques. Prefácio. BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio. França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

LE GOFF, Jacques. Prefácio. In: BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Uma história dos Annales (1921-2001). Maringá: Eduem, 2004.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da & SCHURSTER, Karl. Passageiros da tempestade: fascistas e negacionistas no tempo presente. Recife: CEPE, 2022.


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