Em 1998, o filósofo franco-argelino Jacques Derrida, proferiu uma conferência na Universidade de Stanford, Califórnia, sobre arte e humanidades no que ele chamou de Universidade de amanhã. Centrada na relação entre a “profissão” de professor e o papel das humanidades, essa conferência foi publicada em 2001 sob o título de L’Université sans condition (Éditions Galilée, 2001) etraduzida no Brasil, em 2003, com o título A Universidade sem condições (Edição Liberdade). Inicialmente é necessário destacar que “sem condições” significa, para o filósofo, “liberdade incondicional” (2003, p. 14). Se tivesse que resumir o que está por trás deste conceito diria que a Universidade deve gozar do valor moderno de colocar em questionamento qualquer ideia digna de ser pensada, inclusive a própria democracia como forma de regime e discurso.
O direito do saber e do dizer publicamente como heranças modernas, ainda que não realizadas em função do aspecto de vulnerabilidade que a Universidade possui frente “aos poderes que a comandam” (2003, p. 20), são princípios incondicionais do que o filósofo chama de novas Humanidades. Não é meu intuito refletir de modo exaustivo sobre o pensamento derridariano, mas quero expressar a sensação que tive, depois de um longo período distante das solenidades acadêmicas, ao participar de uma formatura de graduação na Universidade Federal de Sergipe, no passado dia vinte e seis de novembro, como um dos professores homenageados.
Entre alugar a beca e tirar medidas, alinhavei ideias que circulavam em minha mente na busca de entender ou talvez de participar de forma mais efetiva, e não apenas formal, de um momento que para uns é cansativo e ultrapassado, mas para outros, fechamento de ciclo, abertura para o mercado, realização de projetos rascunhados, esquecidos ou guardados à espera de condições propícias para suas efetivações. Uma ideia em particular me fez refletir de forma mais persistente: o que os estudantes levam da Universidade e, em particular, das Humanidades? Uma resposta imediata foi: conhecimento. Mas que tipo de conhecimento? Com que finalidade se conhece? Me dei conta que pressupor conhecimento implicava em buscar conhecer aquilo que já se tem como dado e me vi diante do velho dilema socrático de um saber que se reconhece em sua ignorância.
Ao dirigir-me ao auditório refiz meus próprios passosde outrora quando aluno, saído de escola pública, concluía licenciatura em Filosofia sem jamais ter me perguntado sobre o “porquê” de tê-lo feito. Creio que é assim que acontece com uma grande parte dos alunos e alunas que cursam as licenciaturas em Humanas. É interessante observar que mesmo existindo razões de ordem pessoais do tipo “gosto muito de ler”, “sempre gostei de refletir”, “não gosto de outras áreas”, etc., permanece uma certa opinião generalista de que quem opta pelas Humanidades não teve condições de aprovação em cursos tidos como de “elite” ou de pontuação elevada. Não questiono esse ponto de vista, mas gosto de pensar para além dos modelos que definem grande parte das vidas dos profissionais que hoje saem das Universidades. Ao participar da formatura de três cursos, que pessoalmente tenho grandes afinidades(Filosofia, Ciências da Religião e Geografia), confirmeiminhas impressões sobre o papel das Humanidades e, principalmente, do valor de cada profissional que delas saicom seu diploma e compromissos.
A diretora do Centro de Educação e Ciências Humanas fez um discurso que, para alguns dos presentes, talvez tenha passado despercebido ou, para outros, teve um certo tom “esquerdista”, “marxista” ou “comunista”,algo sempre empregado às Humanas e tão evocado nos últimos tempos dentro e fora das Universidades em nosso país. No entanto, não se tratou disso. A professora lembrou do compromisso sociopolítico daqueles e daquelas que, a partir de então, passarão a ser reconhecidos e reconhecidas como professores e professoras que terão a possibilidade de trabalhar para a construção de um país mais justo e digno. Foi ouvindo o discurso da professora, que terminou com um belo poema de Bertolt Brecht, que me lembrei da conferência de J. Derrida citada anteriormente. A relação entre professor e trabalho é algo central nas reflexões do filósofo nesse texto.
Sem alongar-me, recupero sua análise a partir da noção latina de professar (profiteor, professus sum) entendida como declarar; professar como ato de fé jurada e testemunhada publicamente, diz ele: “professar é dar um pendor, empenhando sua responsabilidade” (2003, p. 37).Com relação a trabalhar é curioso porque há uma alteração ao passar-se do verbo ao nome. Trabalhar e trabalhador, no caso da Universidade, tem nos estudantes algo bastante significativo, isto é, “por mais que um estudante trabalhe, ele será considerado como trabalhador apenas se estiver no mercado” (2003, p.42). Não por casualidade que trabalho tem sua raiz latina em um instrumento de tortura medieval chamado de tripalium. Na base dessa associação reside uma concepção expiatória do trabalho. Não é possível seguir as consequências derridarianas da distinção proposta entre trabalho, ofício e profissão, mas gostaria de destacar a ideia do trabalho como um reconhecimento de um corpo vivo que se engaja e se situa em um lugar, em uma zona de passividade, no sentido de ser afetado (páthos), tanto quanto de produzir.
Em um mundo de relações cada vez mais complexas entre os seres humanos e a vida, no qual o trabalho ou a sua redução se mistura com as novas tecnologias ciberespaciais e múltiplas formas de atividades produtivas, em certos casos, de semiescravidão, é preciso professar o compromisso com o pensamento crítico capaz de ir além de uma suposta formação em que os conteúdos são transmitidos alheios à realidade social na qual os indivíduos estão inseridos.
Em sendo assim, uma filosofia que não leve em consideração o descaso para com os valores, não só humanos, a negação progressiva de direitos fundamentaisà vida e o próprio ato de pensar tido como inútil, parafraseando um lema socrático, não merece ser estudada. Igualmente, um profissional das Ciências da Religião que não professa sua responsabilidade para com a pluralidade da experiência religiosa e o respeito à história das religiões como parte constitutiva, indiscriminadamente, de um modo humano de estar no mundo, não cumpre com o juramento público que coroa a sua formação.
A Geografia, do mesmo modo, não pode desvencilhar-se dos grandes desafios atuais que envolvem o desenvolvimento sustentável e a preservação dos recursos naturais em suas etapas de extração, produção e transformação em bens de consumo, sob pena de permanecer no que Milton Santos chamou de “geografia corográfica” reduzida a enumeração de lugares, rios, acidentes geográficos etc. É imprescindível o que o geógrafo André Fel nomeou de geotécnica, ou seja, o estudo apurado das inter-relações entre as mudanças técnicas e as mudanças geográficas.
De modo que, quando vejo líderes políticos defenderem uma educação baseada no ensino puramente técnico ou, inclusive, em valores teológicos, sou tomado por um sentimento de decepção que encontro nas Humanidades as forças necessárias de resistência à ignorância que parece se alastrar sobre nosso destino enquanto humanidade. Felizmente, as reformas não são impostas, mas se fazem lentamente por meio de políticas públicas comprometidas com a diminuição dasdesigualdades e com o compromisso de uma educação acessível, não pelo discurso excludente da meritocracia desvinculada das condições socias, mas do mérito dos que, conscientes das dificuldades as quais estão submetidos, agarram as oportunidades como leões e leoas e,publicamente, professam sua fé como testemunho da incondicionalidade reflexiva que deve imperar nasHumanidades frente à lógica planificadora de um tipo de pensamento, alheio às liberdades, que busca instalar-se definitivamente como poder e controle.
Recorro, uma vez mais, a Jacques Derrida para dizer que a Universidade não se reduz a um espaço, nem tem sua figura no professor. Diz ele: “A Universidade está em cada lugar, procura seu lugar em toda parte onde essa incondicionalidade pode ser anunciada” (2003, p.82). Foi com esse sentimento de compromisso de dividir responsabilidades que saí da cerimônia de formatura na esperança de que as Humanidades continuem formando profissionais capazes de se reconhecerem como partesintegrantes e decisivas de um mundo a ser sempreconstruído.
Não se trata de uma tarefa fácil, mas nela reside a beleza dos que veem, no conhecimento, caminho de autonomia e justiça. Se “todo belo é difícil”, como diz o provérbio grego, eu diria que não há beleza maior do que contemplar os rostos dos que, a duras penas, superaram o difícil que é nascer, crescer, estudar, trabalhar e se manter em um sistema que insiste em converter pessoas em números. Como observa Ruth O’Brien, no prefácio do excelente livro de Martha Nuusbaum, Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades (Martins Fontes, 2015), embora a literatura e a filosofia tenham mudado o mundo, aflige mais aos pais que seus filhos sejam analfabetos financeiros do que tenham uma deficiente formação em humanidades (O’Brien, 2015, p. XV).
Finalmente, os que criticam as Humanidades como espaço de baderna e irrelevância teórica, desconsideram o fato de que são as Humanidades, desde o ensino fundamental, as que alimentam aspectos imprescindíveis para uma formação de um ser humano capaz de se reconhecer e reconhecer o outro como constituintes de um mesmo mundo. Para tanto, as Humanidades de hoje e de amanhã devem resistir e insistir na incondicional tarefa de, inclusive, desconstruir a si mesmas. Mas isso já é assunto para uma nova conversa.
*Cicero Cunha Bezerra
Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe.Professor dos Programas de Pós-Graduações em Filosofia, Letras e Ciências da Religião/UFS. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPQ.