"Por ser ingênua, a informação principia uma rede de ilusão e fantasia onde as sombras da caverna platônica são confundidas com conhecimento, realidade e verdade"
*Geovânia N. de Carvalho
No prólogo de Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial (2024), Harari analisa e aprofunda questões discutidas em obras anteriores: Homo Deus: uma breve história do amanhã (2016), 21 lições para o século 21 (2018) e Sapiens: Uma breve história da humanidade (2020). Trafegando no cenário cibercultural agudizado pelas tecnologias da informação e comunicação - TDIC, o autor já assinalava a tendência planetária do desenvolvimento e uso da IA, ressaltando o estado preocupante de sua força e ampliação ascendente em todas as dimensões humanas. De lá pra cá, a IA se tornou a grande vedete, expressão usada por Santaella (2021). Nessa direção, o sentimento de Harari em 21 Lições, se encaminhava para o estado de perplexidade que, entre tantas ambivalências e preocupações inerentes à IA, apresentava possibilidades funestas para as humanidades marcadas pela irrelevância e obsolescência no panorama social, especialmente economia, profissões e uma total reconfiguração das organizações sociais e seus desdobramentos (política, educação, comunicação, cultura, economia, por exemplo).
O século XXI, sob essa lente, é um marco histórico delineado por atravessamentos de uma rede rizomática informatizada sustentada pelas TDIC, cujos nós são suportados e alimentados por outras redes causais e de efeitos sistêmicos emergenciais, ambivalentes, indeterminações, crises e desafios de toda ordem.
Para enveredar numa discussão sobre o século XXI sob a curadoria de Harari, é preciso compreender seu recorte analítico presente em todas as suas obras, ao menos as traduzidas para o português: o processo de desenvolvimento tecnológico iniciado nos primórdios da civilização humana até a atualidade evidenciado por sua expressão de sofistificação espiralada. Fato que indica e confirma a permanência do estado de perplexidade da humanidade. Esse mote contínuo, do latim - mobile perpetum - avança sobre as humanidades, alternando conceitos e criando outros de acordo com a dinamicidade da linguagem gerada na fertilidade das novas invenções e desdobramentos tecnológicos consoantes às emergências, apropriações e imposições de uso individual e coletivo, para atender as novas invenções que solicitam outras formas de dizeres. Assim, linguagem e tecnologia, tecnologia e humanidade são pares indissociáveis, espelhos e ação retroativa das ações humanas. São circuitos entrópicos da aventura humana em seu devir histórico.
Dito isto, exponho as impressões do prólogo da obra Nexus de Harari.
Nesta sessão, o autor traça o itinerário analítico, apresentando a tese rizomática na qual, um elenco de conceitos participa do corpo argumentativo. A tese diz o seguinte: “O principal argumento deste livro é que a humanidade obtém enorme poder construindo grandes redes de cooperação, mas essas redes são construídas de uma forma que predispõe os humanos a usarem o poder de modo pouco sábio. Nosso problema, então, é um problema de rede” (p. 11-12).
Em Nexus, título provocativo, o autor indica a predominância do fenômeno sistêmico - complexo - que suporta as relações humanas mediadas pela rede informática. Rede, dito por Lévy em seu clássico Cibercultura (1999), sugere a metáfora de um oceano de dados informacionais que são capturados e processados de forma consentida ou não pelos usuários. O mar de dados gera um oceano de informações sobre o qual, se evidencia um estado de infodemia. Ou seja, um estado patológico, um pantagruelismo insaciável e ininterrupto de informações, traduzido pelo sentimento de perplexidade. Tais contornos revelam ambiguidades: se de um lado, proporciona a ampla produção e democratização de informações, de outro, apresenta o caráter de descontrole, incertezas, emergências devido ao uso antiético, antidemocrático e esvaziado de sentido.
A rede infotécnica, a nova ágora (Lévy, 1999) é reconhecida como ponto de inflexão para a humanidade enquanto núcleo democrático e de conhecimento por Obama, Kurzweil, Zuckerberg e outros nomes devotos do Silício, citados por Harari. Entretanto, segundo este autor, a rede não tem se mostrado sinônimo de democracia, conhecimento e muito menos de sabedoria, contrariando seus arautos. Mas, por carregar a ambiguidade em sua estrutura, poderá ser agente para conhecer e desenvolver atitudes sábias, reconhece Harari.
Os argumentos de Harari são elaborados conforme um rizoma deleuzeano, por trazerem elementos de outras redes conceituais e atualizadas pela crítica atenta aos acontecimentos planetários em cadeia sistêmica. Para desenvolver a tese na qual sustenta que o poder em rede amplamente divulgado não gera sabedoria entre os usuários, o autor se vale de conceitos ou noções filosóficas como poder, verdade, ilusão e fantasia, estabelecendo contradições e ambiguidades entre eles. Cabe relembrar que estas noções caras à filosofia comparecem desde Platão, quando nos convoca a refletir sobre a distinção entre doxa e episteme, atravessando toda a história da Filosofia até desembarcar no século XXI, agudizando as borras entre as noções de informação, conhecimento, verdade e sabedoria.
Harari destaca a ilusão e a fantasia como elementos fundadores da narrativa massificada que confunde informação com verdade e sabedoria. Porém, de acordo com o autor, o oceano infodêmico é mobilizado pelos estados de admiração e estagnação do ato reflexivo, revelando o alargamento ascensional da ignorância que perfila a cultura de rebanho e a massificação da superficialidade informacional. Esse turbilhão de noções equivocadas no contexto democrático e epistêmico, favorece os argumentos do autor ao identificar o parentesco conceitual da informação com a ingenuidade. Do mirante de onde se observa a infodemia, a associação entre informação e ingenuidade (filosófica), apresenta, ou, por se tratar de um texto introdutório, prepara o leitor para o que se seguirá no decorrer da obra.
No contexto filosófico, ingênuo, ingenuidade se refere ao primeiro estado do conhecimento, da intenção de conhecer a verdade sobre um fenômeno causador de admiração. Entretanto, o estado de ingenuidade agravado pelo pathos desconsidera a impossibilidade pessoal e epistêmica de conhecer a totalidade fenomênica, quer seja de um objeto ou da realidade e, apressadamente, entende que o primeiro contato com o objeto seja o conhecimento do objeto, quando ainda o sujeito permanece envolvido pela informação “ingênua” do objeto.
Por ser ingênua, a informação principia uma rede de ilusão e fantasia onde as sombras da caverna platônica são confundidas com conhecimento, realidade e verdade. Segue-se que essa rede informacional em nada assegura a sabedoria, considerando que o conhecimento pertence à rede de atitudes cognitivas e a sabedoria, à rede de virtus - virtudes - da busca de princípios para agir de acordo com o bom senso, o bem pensar, o agir ético e democrático universal.
A informação ingênua também é ambivalente: 1- tanto se encaminha para o otimismo individual, massificado, acadêmico, político - aqui recupero as análise sobre o otimismo frívolo de Jean-Pierre Dupuy, ao sugerir a mudança de um pensamento superficial, portanto ingênuo, para um pensamento apocalíptico esclarecido, e 2- quanto para a negação da rede de informação ser prestadora de desenvolvimento saudável para humanidade.
As duas situações demonstram o caráter ingênuo e populista da rede de informação, mas fiquemos um pouco mais no primeiro aspecto. Harari recupera o estado de deslumbramento de Kurzweil ao anunciar que a tecnologia da informação será capaz de resolver todos os males e demandas da humanidade em todas as áreas, consoante com a pretensão do Google para organizar todas as informações do mundo e disponibilizá-las universalmente como requisito da democratização do saber e sua utilidade e, mais recentemente, Marc Andressen creditou à IA o destino messiânico para salvar o mundo.
De um modo ou de outro, as apostas acima convergem para a tecnologia da informação como ponto de inflexão para solucionar problemas de toda ordem: a IA ganha força universal, passando a receber o tratamento de um “agente” que transcende o plano técnico para atingir o plano moral. Trata-se de um algo, uma coisa, um fenômeno extra humano capaz de corrigir imperfeições em todas as dimensões individuais e sociais. A IA, como uma entidade supra humana, tanto pode ser deus ou demônio - falo isso afetada pelo artigo de Atila Barros - A MORTE DO DEMÔNIO: a obsolescência da inteligência artificial, mas deixemos esse tema em suspenso para outro momento.
Para que a rede de informação tenha sucesso efetivo, é preciso alimentar a rede pantagruélica insaciável por dados; alimentando, por sua vez, informações que criam nexos entre dados, articulando discursos, mobilizando desejos, guerras, crises, incertezas e, igualmente, conflitos global, na medida em que, há uma corrida pela captura e administração dos dados e informações entre países com histórico de guerra. Neste sentido, a IA poderá se metamorfosear de um artefato técnico para um agente com poder totalitário sobre-humano, sem que a humanidade compreenda suas decisões e efeitos e emergências sistêmicos.
Esse panorama da informação ingênua é agudizado pela Cortina do Silício, diz Harari que, ao invés de cumprir pretensões universais e totalizantes, salvadoras e resolutivas de males humanos, polariza o mundo, abre crises e incertezas para humanidade tomada pelo estado de admiração, perplexidade e ingenuidade - elementos do primeiro estágio da ação filosófica e aí permanecem iguais aos mosquitos em volta da lâmpada e, num sentido spinozano, servindo, voluntariamente, às empresas do Silício. Uma vez que algoritmos decidam por nós por meio de informações que lhes fornecemos, a tendência planetária é a de que sejamos tratados como uma poeira informacional passível de monitoramento, mapeamento, datificação para sermos controlados.
Essa tendência está em ritmo alucinante e obnubila questões basilares que, no dizer de Heidegger, são esquecidas: quem somos, poder, verdade, democracia, vida, morte, saúde, liberdade e servidão, informação, tecnologia, limite, controle e tantos outros termos modeladores da atualidade.
Mantendo a direção, ser possuidor, consumir de informação não chancela poder individual, mas sustenta o poder coletivo, uma vez que rede é um fenômeno coletivo, massificado, descontrolado, emergencial e, paradoxalmente, dependente da ação humana para mantê-lo atuante. Vivo, segundo Atila Barros em seu citado artigo no qual discute a “vida” e a possibilidade de “morte” da IA.
O tratamento provocado pela infodemia ingênua reduz a humanidade a dados. Os posicionamentos de Harari desenham questões sistêmicas e antecipam o diagnóstico do século XXI como um tempo patológico sob a emergência de uma racionalidade contaminada pelo silício e nos transportará para um caos existencial, sem sentido, esquecido dos conceitos fundamentais da filosofia, do distanciamento da reflexão sobre questões primordiais e essenciais, desfigurando a humanidade de sua constituição complexa para uma composição determinística semelhante a operacionalização de uma máquina trivial.
Num tempo em que noções de colaboração, coletivo, compartilhamento estão em alta, é preciso investigar sobre como, o que, de quem, para quem e para que estamos em rede, produzindo, disseminado e consumindo informações. As questões são vias para nos aproximar sobre o sentido das redes que frequentamos, consumimos e alimentamos e com essa atitude, aspiramos compreender a noção de REDE.
Refletir sobre esse elenco de questões não tem base infotécnica e sim ética. Sugere recolocar, de certo modo, os conflitos já existentes, denunciados por um elenco de pesquisadores das ciências humanas para buscar compreender seus entornos visíveis e invisíveis, criados pelas novas redes de informação e seus efeitos sistêmicos e planetários. Refletir e agir sobre essas questões não aparta a tecnologia da humanidade, não nega seus benefícios, mas, provavelmente, nos conduzirá para vias mais prudentes de como navegar na rede infodêmica sem que nos percamos de nós mesmos a fim de resistirmos à captura pela “rede de ignorância” (Harari, p. 27).
*Geovânia N. de Carvalho é doutora em Educação, pedagoga no CECH/UFS e pesquisadora no Grupo de Estudo e Pesquisa em Informática na Educação (GEPIED/UFS/CNPq).