Qui, 30 de agosto de 2012, 14:35

De música e amizade
De música e amizade

Luiz Eduardo Oliveira


Eu poderia começar este texto dizendo que a noite do dia 24 de agosto de 2012 foi uma noite histórica. Que as pessoas que foram ao Teatro Atheneu testemunharam o poder da iniciativa individual de um artista que acredita em seus sonhos, que não abre mão de seus projetos mirabolantes, por mais que as pessoas, mesmo seus (falsos) amigos, não mais lhe deem o suporte necessário que todo artista independente precisa para sobreviver etc.


Mas não quero aqui falar da importância histórica de artistas como Vicente Coda. Minha intenção é dizer que a noite do dia 24 de agosto de 2012 foi muito importante para mim, não só pela emoção de rever velhos e fiéis amigos, ou por me encantar com o sentimento e a verdade que Vicente passa ao interpretar suas músicas, mas por reconhecer a pessoa, o ser humano que é Vicente Coda. Queria que todos agora soubessem que Vicente é um amigo verdadeiro que tenho. Que, por mais que estejamos distantes, em projetos distintos, com perspectivas de vida diferentes, ainda nos comunicamos sem palavras. Ainda acreditamos nas mesmas coisas, ainda temos os mesmo valores. Briguei uma vez com Vicente, por causa de uma discussão ridícula na casa de “Agony” Sidney, na época em que eu estava gravando meu cd solo, o Recomeço (2001), e passamos oito anos sem nos falar. Voltamos a ser amigos, por iniciativa minha, em pleno São João, no Forró Caju. Digo-lhes de todo coração que me fez bem ir ao concerto de Vicente Coda.


Tive o mesmo tipo de sensação que experimentei quando vi sua exposição na Biblioteca Pública Epifânio Dória. Na época, escrevi um texto também bastante sentido, como este, porque de fato eu tinha saído realizado e orgulhoso de ter os amigos que tenho, de ter levado a vida que levei. Este é o sentimento que trago depois de ver o show A Viagem de Christine no Universo da Beat Generation. Vicente já tinha me dado o disco e me pedido um texto, mas não o fiz porque não gostei de ouvi-lo. Não tinha gostado também do show de lançamento na Rua da Cultura, e já tinha desistido de comentá-lo. Mas Vicente me convidou para cantar uma música minha, dos primeiros tempos do Crove Horrorshow, chamada Louca Manhã, que ele sempre gostou muito, ao lado dele e de Sílvio, do Karne Krua, outro amigo verdadeiro de longas datas. E lá fui eu para o show, sem esperar muita coisa, apesar de termos nos emocionado bastante quando ensaiamos a música, no Espaço Semear.


Acontece que Vicente entrou no palco como um furacão. Dançou, gritou, cantou, se emocionou, fez vibrar o mais insensível e indiferente espírito que estava no nosso velho e tradicional Teatro Atheneu. Era impossível não se contagiar. E de repente, as coisas começaram a fazer sentido, e eu percebi qual era o plano do mais novo projeto mirabolante do também pedagogo Vicente Coda.


Em primeiro lugar, o interesse de Vicente pela Beat Generation é legítimo, não só porque ele elaborou um projeto de pesquisa sobre a recepção da literatura Beat no Brasil, e que eu ia orientar, no Mestrado em Letras da UFS, caso ele não desistisse dessa empreitada acadêmica e começasse um novo projeto, que era escrever um romance com o mesmo título do seu atual cd. Ademais, ler a literatura Beat – Kerouac, Ginsberg etc. – fazia parte do nosso cotidiano nos anos oitenta – a gente é do tempo em que as pessoas liam livros. Era literatura sovacal – de sovaco mesmo – obrigatória no Cacique Chá à tarde, ou nos botecos por nós eleitos. Assim, por mais que pareça pretensioso escolher essa temática para um cd de música pop, e assim eu disse a ele quando ouvi o trabalho pela primeira vez, não se trata de nenhum surto de eruditismo repentino, mas do registro de algo que marcou a sua, isto é, a nossa geração.


Hoje me arrependo de ter feito um julgamento tão leviano e radical. Tanto que Vicente me pediu para que eu ouvisse seu cd com atenção, tanto que ele atulhou as linhas do tempo das pessoas no Facebook com a divulgação do seu show, e eu nem tchum. Só vendo mesmo o show percebi a dimensão do seu projeto e, mais ainda, a sua ousadia estética. Eu e Marcos Odara costumávamos sacaneá-lo na época de sua banda Fome Africana, com a voz meio desafinada cantando seu “hit” – entre nós, claro – na época, Estado de Coma. Mas durante o show, pude ver que ele tinha ousado fazer uma espécie de ópera, com experimentações visuais, atores de teatro e músicos convidados. Fiz questão de assistir o show da plateia até a minha hora de subir ao palco. O efeito causado pelos vídeos projetados, que iam desde filmes como Easy Rider até imagens dos próprios Beatniks, pela arrumação e distribuição do cenário, pela energia dos músicos, pelo estado emocional da plateia, fazia com que valorizássemos o seu trabalho e respeitássemos seu esforço de montar um espetáculo com essa estrutura quase com as próprias mãos. O público de Aracaju é assim mesmo, cruel e sacana, e só artistas que acreditam no que fazem permanecem nessa lida. Claro que ele contou com a ajuda de amigos músicos, cantores, atores e técnicos de som, mas a iniciativa foi sua.


E que grande realização. Que beleza de espetáculo. Teve alguns altos e baixos, mas as vinte e duas performances – musicais e teatrais – em que se dividia o show não foram cansativas. Quando subi ao palco, juntamente com Vicente e Sílvio, e cantamos juntos minha música, não pude deixar de lembrar de nossos tempos de adolescente, quando estávamos cheios de sonhos e queríamos mudar o mundo. Me emocionei com a energia compartilhada. Me convenci de que música é sentimento, e que o resto é conversa fiada. Me orgulhei, mais uma vez, de ter feito parte de uma geração de pessoas que ainda acreditam nos seus sonhos, apesar dos tapas com que a realidade nos presenteia a cada esquina, de termos defendido nossa causa sem dinheiro, sem instrumentos, tocando mal, com pouco público – os amigos de sempre. Mas tínhamos, e ainda temos, sentimento, e ainda somos amigos, e nossa amizade é verdadeira.


O som estava ótimo. Todos os músicos que participaram do show deram o seu melhor. Não vou citá-los aqui para não me dar ao trabalho de copiar do cd – a lista é imensa. A guitarra, distorcida e agressiva, soava cristalina. A pegada da bateria era forte. As intervenções do DJ foram bastante pertinentes. O baixo pulsava de modo preciso e palpitante. O trompete entrava suavemente, sem aquela estridência característica do instrumento. A guitarra de Vicente soava possante, verdadeira. Quando subi ao palco rolaram algumas microfonias, mas no nosso histórico boa aparelhagem e instrumentos bons são artigos de luxo. E não nos assustam nem nos causam inveja, pois não adianta ter boa técnica, bons instrumentos, se não há sentimento, se não há sangue, força, vida. E tudo isso estava presente. O show foi uma celebração. Todos foram ao palco na hora do bis. Uma curtição para os que estavam no palco e na plateia. Eu, pessoalmente, curti muito tocar e cantar com Sílvio e Vicente. Saí de alma lavada. Que bom que ainda há pessoas assim, verdadeiras, intensas, diretas, sem mistério.


Vicente não está na moda. Vicente não toca no rádio. Vicente não precisa da aprovação dos vigilantes da cultura, seja ela canônica ou pós-moderna. Vicente não faz questão de que as pessoas tidas como entendidas vão para o seu show. Ele tem um público fiel que o respeita e acredita em suas iniciativas, em seus sonhos, em seus projetos mirabolantes. Desculpe-me, Vicente, por não ter dito isso antes para você, mas declaro agora publicamente que você é um amigo verdadeiro que tenho. Saí do show orgulhoso de ser seu amigo, de ter vivido minha vida do jeito que vivi, na companhia de pessoas como você, Sílvio, Sinha, Chico Pitanga, Antonio Félix, Ubiratan e outros amigos de outros tempos. Saí do seu show feliz comigo mesmo. Obrigado por tudo.


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Professor do Departamento de Letras Estrangeiras da UFS.



Atualizado em: Qui, 30 de agosto de 2012, 14:51
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